“Você só tem essa vida.” Uma viagem à mente de Leonardo Machado (Blackslug)

Adentramos no subconsciente de Leonardo Machado (Blackslug) e caminhamos ao lado de suas certezas, inseguranças, sonhos e realizações
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Blackslug (Crédito: Daniel Eliziario).
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“Durante muito tempo eu achei que a música era só pra mim. Eu sou um cara vaidoso, estudo pra caralho, toco guitarra muitas horas por dia há muitos anos, tenho muitos alunos, etc. Essa doideira inteira. O sonho de tocar. […] E isso ajudou a fazer quem eu sou. […] Mas, por outro lado, de uns anos pra cá eu estou trabalhando o outro lado do pêndulo: ‘você acha que toca pra caralho? Você está feliz com os imperativos que seu ego colocou pra você? Então testa e aceita ouvir as merdas que vão vir!’”

Leonardo Machado nitidamente não é nenhum novato. Nascido em Vitória/ES, foi enfeitiçado pela música logo cedo, quando tinha apenas nove anos de idade e se arriscou a tocar o violão de casa com seu irmão. Alguns anos mais tarde, já na adolescência, conheceu o mundo de Yngwie Malmsteen e Steve Vai e sua vida mudou para sempre. Assim que pôde, juntou um dinheiro, comprou sua primeira guitarra e se dedicou ao aperfeiçoamento contínuo e perpétuo daquele instrumento que jamais lhe abandonaria.

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Leonardo Machado no palco do Liverpub Vitória (Foto: João Depoli).

Rude awakening

“Eu tinha uma banda que se chamava Yesterdaze e tocava um som um pouco mais hard rock […], menos pesado e tal,” lembra Leonardo sobre o grupo que, entre 2008 e 2012, ocupou boa parte de seu tempo com composições, gravações e shows com grandes nomes do cenário nacional, como Velhas Virgens, Viper e Matanza. Nada mal. “[Só que ela] acabou. Foi para o buraco.” Sonhos podem ser tão cruéis quanto libertadores, especialmente para aqueles que desistem de sonhar. Leonardo, no entanto, não se atreveu a desistir. “E aí, meio que imediatamente, eu preferi fazer aquele tipo de luto descarga: foram poucos dias e eu dei descarga de uma só vez. Falei, ‘quer saber? Reseta tudo!’”

Nessa mesma época, o baterista Hugo Ali também viu seu grupo chegar ao fim. “A banda anterior que ele tocava acabou. Chamava-se Shotgun Corporation [e] eles até tocaram nas eliminatórias do Wacken [festival alemão] e estavam tocando um metal muito maneiro.” Sem tempo para lamentar a situação, Hugo resolveu dar início a uma nova empreitada e desta vez numa nova direção musical. “Ele ficou sem tocar bateria e começou a tocar guitarra! […] Fez umas aulas de guitarra comigo e […] montou o Broken & Burnt [no qual é vocalista e guitarrista], de 2011 para 2012.”

Leonardo e Hugo não eram estranhos. Seus caminhos já haviam se cruzado inúmeras vezes. Conhecidos desde a época do Assédio Coletivo — “que no começo [era] um coletivo de bandas para fazer uns eventos” —, viram seus laços de amizade se estreitarem cada vez mais. “Hugo frequentava muito a minha casa. A gente estava toda hora com um violão na mão. Fazia um riff, dava uma risada, tomava uma cerveja e fazia um riff.” A música naturalmente deu o seu jeito de roubar a cena e esses encontros despretensiosos acabaram se intensificando e gerando frutos que não seriam facilmente deixados de lado.

“O Hugo estava numa pilha de tocar bateria de novo — estava com saudade. Aí eu falei, ‘vamos tocar?’ e ele falou, ‘vamos!’ Aí fodeu! A gente começou a fazer umas jams e a gente ficou muito surpreso com o resultado,” recorda Leonardo sobre a fundação daquilo que viria a ser a Blackslug — carinhosamente apelidada de Lesma Preta. “Éramos só nós dois. [Eu] ligava o telefone, deixava gravando, ia para o estúdio e ficava lá fazendo jam. Fizemos os riffs que viraram ‘Works and Days’ e ‘Chaos Architect’ [músicas que mais tarde entrariam no primeiro disco do grupo],” recorda Leonardo num híbrido de orgulho e surpresa com o nível de entrosamento musical que teve com Hugo logo cedo. “A gente começou a fazer esses riffs, assim, de primeira, tocando junto e se entendendo. Aí a gente escutou aquela merda e falou, ‘velho, a gente está achando isso bom!’ Como a gente não é bobo, a gente pensou em submeter essa porra ao teste. ‘Vamos pegar as ideias que a gente acha ok — e que nem sejam as melhores que a gente tem — e vamos gravar de bobeira num EPzinho safado.’”

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O guitarrista Paulo Emmerich canta uma de suas músicas (Foto: João Depoli).
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Now’s the fucking time

Em 2013, enquanto oficialmente formavam sua banda, o outro grupo de Hugo, a Broken & Burnt, vinha recebendo bastante atenção devido ao seu álbum de estreia, Let The Burning Begin (2012). Entretanto, os elogios sempre andam lado a lado com as cobranças, e o público agora reivindicava novas músicas. Curiosamente, quem se beneficiou desta urgência foi a própria Blackslug, que viu uma oportunidade em unir os grupos para um lançamento único — como era de costume às bandas independentes da década de 80. “O Hugo falou, ‘vamos fazer um split. A galera está cobrando outro lançamento da Broken e eu não estou pronto para fazer um disco inteiro agora.’ […] Então tivemos esse privilégio de contar com o apoio da galera [da Broken], que foi muito importante. […] Ficamos amigos e tal.”

O Split-EP Stolen/Unsober, lançado em Agosto de 2013 pela Voadora Records (a qual Machado e Ali são associados), veio tão depressa quanto a própria formação da Lesma Preta e de suas composições. Felizmente, seu resultado não poderia ter sido melhor. Além de colocar duas músicas ao teste do público — as arrebatadoras “D.U.I. (superdawn)” e “Weakspot” —, Leonardo também foi homenageado com a adição de uma de suas composições ao catálogo da Broken. “Na parte deles, que é o Stolen, tem a música ‘Soul For Rent’, que é uma música minha. Foram eles que gravaram. O Hugo falou, ‘eu quero gravar e tal, pode?’ Ai eu falei, ‘porra, que honra, né? Claro!’,” recorda o músico visivelmente lisonjeado.

Com Paulo Emmerich na segunda guitarra e Andrey Junca no baixo, a banda percebeu que era a hora de mostrar que, mesmo recente, não carecia de qualidade ou maturidade em seu trabalho. Com isso em mente, o grupo se jogou na estrada e deu início a um ciclo de apresentações no melhor estilo ‘faça você mesmo’. “No começo, a maior parte das coisas que a gente tocou foi a gente que fez,” orgulha-se Leonardo. Foram shows no Correria, no Festival Voadora e no Mangue Fuzz, cuja última edição inclusive levou todo o seu peso ao Liverpub Vitória. “A gente começou a fazer [o Mangue Fuzz] lá no Mãozinha e, graças a Deus, hoje a gente fez aqui [no Liverpub]. Olha a diferença, né? Olha a doideira! E sem nenhum desprezo e sem nenhum desejo de nunca mais fazer algo no Mãozinha. Pelo contrário! Eu acho que a gente tem que frequentar todos os espaços.”

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Just an old man soul’s wish

Apesar da boa recepção e de todos os elogios que o EP recebeu, algo ainda estava faltando. Leonardo não estava de todo satisfeito e seu espírito continuava inquieto. Como todo grande músico, a onipresente e esmagadora pressão de se provar não dava sinais de que lhe deixaria tão cedo. O flêrte com a gravação de um disco neste ponto de sua carreira talvez já tivesse se tornado uma obsessão. “Tem uma coisa um pouco antiga de eu não ter conseguido concretizar o fato do primeiro disco com as minhas bandas anteriores. Então, por mais que eu tenha dado um reset e começado do zero a fazer músicas completamente novas, eu ainda estava obcecado com a ideia de terminar e fazer um disco. Eu precisava disso. Então, talvez é bem provável que eu tenha puxado muito mais a peteca do que os caras.”

O registro de apenas duas canções num EP obviamente passou longe de ser o suficiente para apaziguar os demônios interiores do músico. Um lançamento maior não era apenas necessário, mas fundamentalmente vital. Felizmente, as criações oriundas daquelas primeiras jams com Hugo não haviam sido descartadas. Pelo contrário. Foram aperfeiçoadas em novos ensaios pela Blackslug agora como um todo. Inclusive, cabe lembrar que, das dezenas de músicas compostas, seus melhores exemplares sequer tinham sido aproveitados no EP.

Impulsionados tanto pela crescente ansiedade de seu vocalista quanto pela ideia de que “se o feedback [deste EP] for positivo, vamos fazer essa banda rolar,” o grupo concordou que havia chegado o momento de dar o próximo passo e iniciar a gravação de seu primeiro álbum. “‘Vamos fazer?’ ‘Vão bora!’ E aí fomos. Mas eu acho que um pouco da afobação foi por minha causa,” desabafa Machado. Uma manobra precipitada ou não, seu resultado foi surpreendente.

Scumbag Messiah saiu no dia 08 de Novembro de 2014, pouco mais de um ano após o lançamento do EP. Gravado no Studio Voadora e produzido numa parceria entre a própria banda e Igor Comério (Voadora Records), o álbum foi o louvável resultado de um esforço completamente independente. Suas nove músicas revelam uma banda no topo de seu jogo: vocais dilacerantes e certeiros; harmonias poderosas e assustadoras; riffs furiosamente monumentais; arranjos violentos que marcham pelo stoner, grunge e punk; e um conteúdo lírico profundo que flerta com ansiedade, angústia, melancolia, reflexão e mais.

É impossível escutar este disco sem sentir que suas entranhas foram tomadas à força pelas garras da Lesma Preta. É tanto prazeroso quanto sufocante, e a primeira coisa que se faz após os acordes finais de “Sweet Rejection” é desesperadamente buscar por oxigênio enquanto suas sinapses retornam ao seu estado natural. É como voltar à superfície após quase ter se afogado: seu corpo aliviado agora sabe que está bem, mas sua mente ainda precisa de alguns instantes para entender o que acabou de acontecer. Uma resposta menos expressiva que esta jamais seria digna da Blackslug. Uma incrível nuance de sensações para um brilhante álbum de estreia.

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Echoes of loneliness

Se ainda havia algum tipo de apreensão por parte de Leonardo no departamento de gravação de discos, ele já podia dormir tranquilo e riscar mais um item da sua lista de obrigações musicais. A resposta ao álbum não foi morna, mas sim borbulhante de tão quente! O disco rendeu uma avalanche de elogios à Blackslug e afirmou sua longevidade dentro do cenário. “É […] um emblema de uma fase, saca? Eu já amei e detestei esse disco em proporções… seria até esdrúxulo falar sobre isso, porque é muito subjetivo. Mas é isso que me deixa feliz: eu estou exposto agora,” confessa o músico sobre o significado de ter finalmente lançado seu disco.

Ao mesmo tempo, é importante lembrar que toda a grande obra requer uma grande parcela de trabalho e sacrifício pessoal. Quando a isso são acrescentadas expectativas e frustrações passadas, o empenho torna-se ainda maior — sendo, por vezes, até insuportável. Para Leonardo, o preço exigido pelo processo evidentemente não passou despercebido. “É muito difícil, em épocas muito boas da sua vida, você reproduzir as suas melhores paradas. Tem aquela história da espiritualidade do Oriente, de que o sofrimento é uma porra de um professor sinistro. E aí, sob esse ponto de vista — se esse for válido para levar em consideração de fato —, o universo realmente me aplicou uma peça muito escrota! Eu estava com dificuldade para dizer para alguém que eu estava bem. Era um exercício: eu tinha que respirar fundo, dizer que estava bem e ir embora,” pondera o guitarrista apreensivo em ser taxado como pessimista.

Apesar de toda a fração emocional exigida pelo processo, uma pessoa tão ligada aos ensinamentos orientais como Leonardo jamais esqueceria que em todas as empreitadas da vida sempre existe um prêmio escondido — visível apenas para aqueles que ousam abrir os olhos. O aprendizado. “A gente conseguiu ser banda — sem tanto sofrimento, sem tanto preciosismo, sacou? É um pouco sobre aprender que, para conseguir fazer a parada que eu queria mesmo, eu precisava de outras pessoas, […] de times… de brothers. Até existem esses caras que são capazes de conceber, financiar e fazer a parada inteira e tal, mas esse cara não sou eu! Eu sou um cara de time. Então, para mim, esse disco representa que eu finalmente consegui fazer um time mais ou menos funcional.”

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Screaming till I get breathless

Embora houvesse um turbilhão de emoções dominando o seu núcleo, a Blackslug não poderia ser afetada. Ela é determinada por um conjunto, um time. O show tinha que continuar — e de fato ele continuou. A banda manteve-se fiel à sua filosofia de ‘faça você mesmo’ e prosseguiu com sua maré de apresentações. “Eu acho que tem um pouco a ver com aquela história de que você planta, rega, aduba — faz o que quiser —, mas você espera,” reflete Leonardo sobre os anos que passou na estrada em divulgação ao Scumbag Messiah.

Apesar de ter um belo catálogo ao seu dispor, a Lesma Preta ainda estava com alguns problemas internos que acabaram emperrando a sua evolução musical. “A gente demorou para ter um baixista fixo e estável com a gente para poder entrosar de verdade como um conjunto.” Felizmente, a banda foi agraciada com a entrada de Luiz Magnago, que assumiu permanentemente o baixo da Blackslug. “Luiz está mais do que aprovado! Sem dúvida,” prega Leonardo entusiasmado. Sua chegada garantiu não só uma nova perspectiva sobre as músicas, mas sobre a própria banda. As peças pouco a pouco foram se encaixando e o jogo ficou cada vez mais nítido.

“O disco saiu em Novembro de 2014 e a gente já está em 2017. […] Chegar neste ponto [me permitiu] observar mais, porque as coisas parecem estar mais encaixadas. É um pouco daquela história: se o dever de casa está feito e se a parada em casa está muito boa, a gente não tem que se preocupar com nada. A vibe surge espontaneamente. A galera se identifica com o som e curte […], porque a gente está de boa de verdade. […] É muito prudente aprender com a sabedoria tradicional que é bom buscar o equilíbrio sempre; […] Você não precisa estar brigando consigo mesmo. […] A gente acha isso aqui divertido e a gente espera que você curta. Se você não curtir, desculpa. Se você curtir, massa!”

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Luiz Magnago (esq.), Leonardo Machado e Hugo Ali no Mangue Fuzz (Foto: João Depoli).
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Don’t you know how to come back?

A Blackslug não foi concebida para perder tempo. Surgiu em 2013 e logo de cara lançou o EP Unsober. Pouco mais de um ano depois, o álbum Scumbag Messiah já havia sido introduzido ao mundo. Desde então, a banda vem trabalhando na divulgação de seu trabalho e, mais importante, em compreender melhor a si mesma e suas expectativas. Numa análise superficial, para uma banda tão urgente e prolífica, três anos sem um lançamento parecem mais uma vida inteira. No entanto, a janela de tempo que separa o lançamento do álbum e os dias de hoje não pode ser entendida como um mero elemento depreciativo. Pelo contrário. Foi tão crucial para a sobrevivência do grupo quanto seu imediatismo inicial.

Felizmente, ao longo desta permanente perseguição ao equilíbrio, a banda concluiu que agora já está madura o bastante para seguir em frente e registrar sua atual fase. “A gente decidiu fazer um registro menor desta vez. Fazer um EP. Provavelmente com três a quatro músicas. […] Uma forma de registrar esse momento que culminou na participação efetiva do Luiz aqui na banda e tal,” promete o vocalista. “Dessa vez acho que a gente vai fazer só virtual, para explorar um pouco o merchandising das plataformas [digitais].”

O momento também marca uma transferência do núcleo principal de composições da banda, numa tentativa de democratizar as ideias e enriquecer o resultado. “As ideias estão um pouco diferentes, porque as sementes, digamos assim, vieram também do Paulo — talvez até mais do Paulo dessa vez do que no disco. […] Agora a gente pôde explorar várias ideias dele, então as músicas estão um pouco diferentes e isso é maneiro. A ideia desse EP é registrar esse momento — uma certa democratização do centro de composição. Não são todas as ideias melódicas minhas e a maior parte das letras como era antes. […] O EP quer representar isso.”

Machado também não esconde a empolgação em estar de volta com um material novo. “Já está na hora, né? […] Ter um produto novo na rua é mais um pretexto para circular um pouco mais enquanto vamos testando mais coisas. […] A gente está em fase de pré-produção. Grava, regrava, discute a forma. ‘Ah, não gostei; Isso tá ruim; Tá lenta; Tá rápida,’ essa fase doida.” O processo também demonstra a maturidade do grupo frente aos erros do passado. “A gente já fez elas em vários shows e, de um show para o outro, já mudamos algumas partes drasticamente para testar e ver a resposta da galera — o que a gente não pôde fazer no Scumbag, que é a nossa grande frustração com o [álbum]. A gente sente que a gente só aprendeu a tocar o disco depois que ele estava pronto. Talvez isso tenha a ver com aquela afobação. […] Provavelmente… Mea culpa, mea culpa,” admite Leonardo em meio a um sorriso.

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Leonardo e Paulo dividem os vocais da Blackslug (Foto: João Depoli).
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To free your devils within try and face ’em!

Ter êxito numa certa missão é sempre algo admirável. O desfecho daquilo que há anos você designou a si mesmo pode ser inclusive catártico. No entanto, é preciso um bom senso de discernimento para entender o significado e a relevância de sua conquista dentro do contexto em que ela está inserida. Do contrário, desvirtuar-se daquilo que você cuidadosamente construiu e nutriu por tanto tempo pode tornar-se tão inevitável quanto irreversível.

“Ao mesmo tempo que é uma paixão muito doida e uma vontade muito grande de fazer, é um exercício continuado de não ficar alimentando nenhum tipo de expectativa exagerada e nenhum tipo de vaidade… ainda mais numa cidade em que a gente sabe que é difícil fazer os números virarem,” avalia Leonardo numa clara indicação de que seus triunfos não lhe subiram à cabeça. “Existem pessoas que gostam de música? Sim. Existe um monte de música diferente sendo feita aqui em Vitória? Sim. Mas a gente vive num sistema que se baseia em números. Você precisa atingir certos números mínimos para poder funcionar. […] Então é foda lidar com isso.”

Vitória é uma cidade tão pequena e ao mesmo tempo tão perversa, que ser um artista independente chega a ser uma forma de protesto. Sua sobrevivência e longevidade dependem tanto de seus esforços quanto da dedicação do ouvinte, que por vezes se sente tão só quanto o próprio artista. “Quando eu tinha 17 anos, eu vinha lá […] da Serra. Pegava duzentos ônibus […] para ir no Camburi Vídeo [antigo point underground] ou nos outros spots que tinham por aqui para ver algumas bandas,” lembra o músico num tom nostálgico e efervescente. “Tinha o lance do cover, como tem hoje e sempre vai ter. O cover é massa, eu também trampo no cover, mas, pô… era legal chegar lá e encontrar uma banda tocando, sei lá, heavy metal melódico — que era o que eu ouvia na época. Isso cumpria pra mim uma função de dizer que a parada não tem que ficar só na ‘boutique’, lá longe de você, sacou? Você não tem que gostar de metal melódico e por isso você escuta só o Iron Maiden. É possível que pessoas façam essa merda perto de você,” alfineta o guitarrista com um sorriso endiabrado.

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Agenda do mês de Dezembro (Arte: Paulo Emmerich).
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No caso da Blackslug, a situação pode ser ainda mais complicada. A comunidade musical que acompanha sua sonoridade tende a ser um pouco mais fechada e de menor acesso ao público maior. Alcançar os “critérios numéricos de relevância” exigidos é uma tarefa árdua. “Não é palatável. Não é para todos os gostos. E eu acho que nada é mesmo. É importante que não seja inclusive! É importante afirmar as diferenças no espaço específico delas. Então, poder fazer isso aqui no Espírito Santo hoje, e como a gente está fazendo, é um privilégio […], um sucesso, assim, pra mim, inesperado. Eu estou ‘derretidão’ […], assim, bem emocionado. É uma honra sinistra,” reconhece o músico num momento de autêntica surpresa e euforia.

Todos podem passar uma vida reclamando por um significado e questionando qual caminho leva à liberdade. A própria Blackslug o fez e certamente ainda o fará bastante. A resposta reside na própria busca — a eterna peregrinação. Não existem garantias de sucesso ou de qualquer outro prêmio. A única coisa que podemos fazer é tentar constantemente seguir adiante. “Não importa se tem só duas pessoas no universo que gostam da parada que você gosta. Se é a parada que você gosta, gosta dessa porra! […] Você fez isso tudo e você provou para você mesmo que você é capaz de fazer essa merda. Agora dê utilidade pra isso, sacou? […] Vai ficar só pra você pra quê? Você se preparou, fez o dever de casa e está pronto. […] Tem pessoas lá assistindo, só entrega pra elas […] Você só tem essa vida, sacou? Faça isso, velho! Faça isso!’”

Texto: João Depoli.

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