“Tem sido meu momento de catarse. Minha válvula de escape.” Everton Radaell e a resiliência da Auri

Vocalista, guitarrista e frontman da banda Auri, Everton Radaell fala sobre a concepção da banda, seu Frankenstein musical, ‘Resiliência’ e mais
capa-auri-divulgação
Foto: Lucas Pontes.
PUBLICIDADE

“A Auri tem sido o meu projeto principal, sacou? […] É a parada que eu tenho gastado mais tempo em cima, criativamente e [em termos] de energia também. Não é à toa que o nosso primeiro disco se chama Resiliência. […] Eu posso falar que a Auri meio que salvou a gente, sacou? E tem sido cada vez mais recompensador. A galera que tem banda independente sabe o quanto é guerrilha… É meio fodidaço, […] mas tem sido meu momento de catarse. Minha válvula de escape, sacou?”

As palavras de Everton “Ton” Radaell enquanto conversávamos no início deste mês na barulhenta pista da Bolt mostram o zelo que o vocalista e guitarrista tem com a Auri, projeto que iniciou com seu amigo de adolescência, o baterista Bruno “Kanela” Miranda. Há apenas alguns anos, ambos não poderiam sequer imaginar que estariam numa calçada musical tão diferente. “A gente tocava uma parada nada a ver. A gente tinha banda cover de J-Rock — bandas japonesas. A gente tocava nuns eventos que tinham de cultura japonesa aqui no estado e fazia cover dessas bandas,” lembra Everton. Imensurável é um eufemismo quando se trata do abismo sonoro entre o J-Rock e a Auri.

auri-everton-estudio-facebook
Everton Radaell durante uma sessão de gravação da Auri (Foto: Divulgação/Facebook).

Afinal o carma vem

Durante as suas excursões no universo sonoro japonês, a mente inquieta e criativa de um designer gráfico como Everton percebeu que já estava na hora de encontrar um desafio que lhe fosse mais instigante. De certa forma estagnado, começou então a flertar com a possibilidade de realmente colocar sua criatividade em uso. A solução foi o universo da música autoral. Sua proposta, no entanto, não era simplesmente escolher um determinado gênero e compor músicas numa linha. Suas ambições eram muito maiores e bem mais complexas.

“Mais ou menos em 2013, eu pensei, ‘pô, a gente podia fazer um projeto autoral, sacou?’ Só que eu queria fazer um projeto que misturasse sonoridades,” recorda Radaell. “No começo foi meio complicado, porque, tipo, a gente precisava achar gente que fosse versátil para conseguir tocar várias sonoridades e tal… achar gente que ia levar o projeto a sério, porque, como não era nossa primeira banda, a gente queria fazer a parada na moral e às vezes a gente pegava a galera que estava meio que querendo só curtir, e aí não ficava no projeto. […] Da formação original, ficou só eu e o Kanela.”

Buscar indivíduos para formar uma banda é algo exaustivo por natureza. Se deparar com os músicos certos já é um privilégio. Agora, encontrar pessoas com quem você possa se relacionar no nível pessoal e que também sejam versáteis ao ponto de encaixar elementos de rock, pop, progressivo, indie, R&B, funk, samba e MPB nas mesmas canções… se isso não for um milagre, eu não sei o que é! Everton e Kanela podem agradecer a quem quer que seja, pois foi isso que eles experimentaram.

A banda finalmente se viu como uma entidade funcional com a entrada de Thaysa Pizzolato (“ela falou, ‘quero ser a tecladista’”), Danilo Galdino (“ele tocava guitarra e eu vi o show [da banda dele e pensei], ‘porra, o moleque toca e canta! Eu vou chamar ele também’”) e Gabriel Hand (“a gente fez um curta de terror juntos. Eu conheci ele na faculdade e soube que ele tocava baixo”). Quem escuta a versão de Everton sobre o recrutamento destas figuras pode até achar que foi algo simples e orgânico — e de certa forma realmente foi, daí o status de milagre —, mas eu tenho certeza que, lá no fundo, ele deve ter se livrado de todos os seus demônios num gigantesco suspiro expurgador.

“A gente queria um nome que fosse curto, […] porque a gente achou que fosse mais impactante e fácil de gravar. Mas aí a gente precisava [que ele tivesse] um significado,” esclarece o vocalista sobre o batismo de seu projeto. A escolha do nome, no entanto, foi fruto de uma contribuição da formação anterior. O antigo baixista foi o responsável pela sugestão de ‘Auri’. “Significa ‘brilhante’, em japonês, e em galês significa algo como, ‘tornar algo dourado; fazer algo ouro’. Como a gente tinha essa parada de pegar o que a gente achava melhor de cada estilo para juntar numa parada só, a gente achou que o significado cabia bem. Era como se a gente quisesse pegar um pouco do melhor de cada estilo e tornar em algo ‘dourado’.” Touché!

auri-banda-divulgação
Gabriel Hand (esq.), Danilo Galdino, Everton Radaell, Thaysa Pizzolato e Bruno Miranda (Foto: Divulgação/Facebook).
PUBLICIDADE

Eu quero ter a certeza que a minha vontade vai valer

Sua formação definitiva pode até ter demorado a chegar, mas a vontade do grupo em descobrir a si mesmo esteve sempre lá, percorrendo minuciosamente a incrível e labiríntica montanha-russa que é projetar uma visão dentro de um som. “A primeira formação começou a compor. A outra chegou e foi mudando as coisas,” explica Ton sobre o processo criativo da Auri. “Eu trazia as letras e o grosso da parada — tipo a base e a melodia vocal — e a galera ia colocando arranjos. A gente geralmente fazia um riff e, a partir do riff, ia colocando letra e tal.”

Mesmo se deixarmos de lado a questão da rotatividade inicial de integrantes e o efeito disto nas canções, é difícil de imaginar que as composições desta banda sejam fruto de um esforço simples e corriqueiro. Os arranjos são tão complexos que Everton vê o conjunto como um “como é que fala? Frankenstein!” Segundo o vocalista, as músicas do grupo geralmente passam por “vários processos de produção. A gente faz a música [e diz], ‘porra, acho que agora está finalizada.’ Aí, a gente grava os ensaios, fica ouvindo e, tipo, ‘ah, tal parada não soou tão maneiro. Vamos tentar outra coisa?’ Mas ainda assim, […] é mais no feeling mesmo: ‘não, chega! Se mexer agora já está demais. Acho que já está no grau!’”

A primeira das composições da Auri a ver a luz do dia foi “Futuro”. Gravada, mixada e masterizada por Bruno Zanetti e Kiko Miranda no estúdio Funky Pirata, em Vitória/ES, a canção foi disponibilizada no dia 10 de Março de 2016 e finalmente apresentou ao público o resultado de todas as experiências que deram vida não a uma criatura, mas à tão cuidadosamente lapidada identidade do grupo. “Tenho tudo nas mãos, mas até quando eu vou ser capaz de segurar? Eu perdi os pregos que nos bolsos eu guardei pra caso algum trilho saísse do lugar” canta Ton em seu verso de abertura, que surge num momento de calmaria duvidosa após um duelo de sintetizadores e riffs pitorescos. As metáforas estão ali, os vocais são excêntricos e divertidos e a mescla de estilos é evidente — até uma levada de samba se espreme num dos versos! Definitivamente, missão cumprida.

PUBLICIDADE

Ouvi dizer que ganha o prêmio quem para de esperar

Nem só de talento e trabalho duro sobrevive uma banda. Às vezes, uma pitada de timing pode ser aquele fator determinante que fará toda a diferença. No caso da Auri, este feliz acidente foi a entrada do produtor capixaba Felipe Gama no ciclo interno do grupo. “A Thaysa trabalhou por um tempo na gravadora Rec. Ela ia ser mandada embora e o Felipe viu ela e falou, ‘pô, vem trabalhar comigo’. […] Trabalhando com ele, ele ouviu o nosso som, se interessou e disse, ‘deixa eu gravar e produzir.’ E aí, rolou,” lembra Radaell admirado.

A parceria foi colocada em teste no próprio estúdio de Felipe, o Gama Soundz. A banda chegou com as composições que tinha até então, mas logo notou que este cenário havia acendido uma nova chama de inspiração em seus integrantes. “Quando a gente chegou no estúdio para gravar, a gente [pensou], ‘não! Vamos fazer outra parada’,” garante o vocalista sobre a renovada ânsia de criar o melhor trabalho de suas vidas. “Foi muito massa. Ele foi um cara que deu muito do que a gente queria tirar da sonoridade. Ele foi foda, porque ele não só gravou, mas produziu também. Ele foi no ensaio, nos deu noção de outras paradas que a gente não conhecia, de influências e tal. Então foi, tipo assim, do caralho!”

O primeiro dos trabalhos a ser lançado destas sessões com Gama foi a música “Sonhador de Pé Inchado”. Não, ela não fala sobre abuso de álcool, mas de tanto andar para se alcançar o que deseja — que claramente não é pouco. A canção foi disponibilizada sob a forma de um lyric video dirigido pelo próprio baixista da banda, Gabriel Hand, no dia 27 de Julho de 2017. Sua primeira exibição, no entanto, veio como um presente para aqueles que estiveram no show da banda com Merci, no Liverpub Vitória duas semanas antes.

PUBLICIDADE

Traz minha resiliência pra fora

Analisando a trajetória de lançamentos da Auri, é difícil não esbarrar com várias evidências de seu incrível senso de identidade. Antes mesmo de disponibilizar “Futuro”, a banda já falava publicamente sobre um lançamento que reuniria um coletivo de canções que compartilhariam um conceito único: resiliência. Se o termo não lhe é familiar, o dicionário pode lhe ser útil: “1. [Física] Propriedade de um corpo de recuperar a sua forma original após sofrer choque ou deformação. 2. [Figurado] Capacidade de superar, de recuperar de adversidades.”

“Todos os membros — na época em que a gente estava gravando — estavam passando por uma merda, sacou? Então, a Auri foi meio que aquela boia no meio da água turbulenta que [nos] ajudou,” confessa Everton sobre a temática que gira em torno das cinco canções oriundas da parceria com Felipe Gama. Na verdade, deveriam ter sido seis: “nossa ideia era que ‘Futuro’ [também entrasse], porque a letra dela também tem a ver com o conceito. Só que acabou que não deu por questão de logística. A gente gravou ela num estúdio, […] ficou um tempo parado e aí foi retomar em outro estúdio. [Por isso] a master ficou muito diferente [e] como a gente não tinha tempo para regravá-la, ela ficou [como] um single separado.”

Em todo o caso, o disco saiu no dia 19 de Outubro de 2017. Apropriadamente nomeado Resiliência, conta com as músicas “Homem de Lata”, “Lar”, “Cais”, “Sonhador de Pé Inchado” e “Manhã”, que estão distribuídas em pouco mais de vinte minutos. Felipe Gama assina não só a produção e mixagem do produto final, mas também sua masterização e as edições (crédito que divide com a tecladista Thaysa).

Em termos sonoros, o disco não poderia ser um melhor exemplo de versatilidade. Assim como a prévia apresentada em “Futuro”, as músicas de Resiliência continuam passeando por uma infinidade de estilos justapostos, porém de uma forma mais madura e bem resolvida. A ideia desta mescla em si é algo extremamente perigoso e que poderia até ter sabotado a própria banda. Todavia, a impressionante técnica e primazia do grupo conseguiram domar esta quimera e tornar o Frankenstein ainda mais pop.

Nem mesmo a arte da capa fugiu à proposta. Preocupado em manter a estética do registro igualmente fiel ao conceito lírico, Everton escolheu trabalhar com a imagem de um tardigrado, uma criatura microscópica, cujos fósseis datam de mais de 500 milhões de anos. Segundo a Revista Galileu, são seres capazes de sobreviver em condições extremamente absurdas, como no vácuo do espaço e até mesmo em temperaturas que atingem os oitenta graus negativos — um verdadeiro símbolo de resiliência!

PUBLICIDADE

Eu espero a minha vez de ser premiado

Sobrecarregado com as tarefas profissionais alheias ao universo da Auri, Radaell admite não conseguir arrumar tempo para examinar a repercussão e o feedback de sua banda. No entanto, a qualidade e o esforço que o grupo depositou em Resiliência naturalmente não passariam despercebidos. “Uma galera de São Paulo — a banda Supercombo e tal — ouviu o nosso som e colocou a gente num grupo de Whatsapp com outras bandas, tipo, ‘pô, essa banda é maneira, vamos tentar fazer as paradas’,” conta o vocalista sem esconder o afeto e respeito pelo Supercombo, grupo de São Paulo capitaneado pelo capixaba Léo Ramos, no qual a Auri certamente busca algumas inspirações para estruturar suas composições.

Deste grupo virtual surgiu a oportunidade de trazer a banda natalense Plutão Já Foi Planeta para um inédito show na Bolt, em Jardim da Penha no início deste mês (02/12) — ocasião em que eu pude finalmente conhecer os integrantes da Auri pessoalmente. Nos bastidores daquela noite chuvosa, a banda se mostrou extremamente confortável e segura de si. Mesmo com todos os atrasos na passagem de som da Plutão — e a consequente maratona que o quinteto teve que correr para arrumar o palco em pouco mais de meia hora antes da abertura da casa —, Everton e companhia não perderam a postura e levaram tudo graciosamente sem um pingo de preocupação aparente.

Quando eu o questionei sobre a dificuldade em reproduzir o conteúdo de Resiliência ao vivo, de modo que não ocorressem perdas, ele se mostrou bastante desprendido e enfático ao negar a pergunta com um sorriso. “Como a gente é uma banda que tem muito instrumentista, acaba tendo muita camada por si só,” entrega Everton sobre a força do grupo, que nitidamente reside na certeza que cada uma das partes tem na habilidade das outras. Tudo isso se reflete em seu show: uma verdadeira exibição de carisma, convicção e impecabilidade.

@bandaauri no palco da @boltantimofo ontem a noite

Uma publicação compartilhada por Inferno Santo (@infernosanto) em

PUBLICIDADE

Eu paguei para ficar, mas agora quero sair

Firmes na repercussão do disco, a banda não vê o sossego como uma opção. “A gente agora quer trabalhar mais no Resiliência, mas não parar,” garante Ton a respeito de suas pretensões futuras — e a lista é grande. “A gente está para gravar […] o clipe de ‘Cais’; Tem o ‘Sala de Estar’, que a gente gravou a música lá e eles devem soltar [o vídeo em breve]; E a gente pretende fazer mais shows, mas, tipo assim, nosso interesse e vontade mesmo é começar a gravar o próximo álbum […] até o primeiro semestre do ano que vem,” conta o vocalista entusiasmado.

Dispostos a não deixar que os ventos dissipem o eco que Resiliência trouxe ao cenário musical, a Auri agora aposta na bagagem que cada integrante acumulou ao longo deste curto, porém frutífero tempo em que estiveram na estrada. “Nas músicas novas que a gente está compondo, eu levo só a letra sem melodia. Mostro mais ou menos para a galera e todo mundo compõe junto, sacou? No primeiro [disco], eu trazia o grosso e a galera rearranjava. Neste, está sendo mais compartilhado,” revela o músico acerca da abertura do centro criativo do grupo. A repentina democratização das composições não é um processo que costuma funcionar muito bem para certas bandas, no entanto, tratando-se desta — em que cada integrante é uma enciclopédia musical ambulante — é difícil de imaginar que o resultado não seja no mínimo agradável.

“Nossa ideia é fazer um som que a gente curta [e] que a gente fique satisfeito com o trabalho, sacou? E, tipo assim, eu gosto muito quando a arte em geral, tipo… soma nas vidas [das pessoas]. Tipo assim, ela traz uma parada positiva, sacou? Às vezes um cara estava mal, sei lá, ouviu o nosso disco e passou alguma parada pra ele — nem que seja uma parada tosca, como: ‘aprendi uma palavra nova que eu não conhecia’, sacou? Quando rola essas paradas, já é um reconhecimento de trabalho,” admite o frontman em tom de otimismo. “O que eu quero é continuar trampando e que haja esse reconhecimento, independente se é aqui ou se é fora, sacou? A ideia é essa.”

A Auri segue em seus próprios termos, como sempre fez. Uma banda com um conceito tão claro e que se apoia num meticuloso e admirável método de transformar sua essência em algo tão acessível jamais encontrará dificuldade em dedicar-se a ser feliz e a não deixar ninguém lhe dizer como fazer.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

Mais do Inferno Santo