Alguns meses após o seu lançamento físico, o álbum de estreia da banda de pós-punk Fake Dreams finalmente foi disponibilizado para audição nas principais plataformas de streaming. Lançado ainda em junho pelo selo paulista Deepland Records, Sonhos conta com oito faixas compostas pelo quarteto ao longo dos últimos dois anos.
O disco chega após um longo período de conflitos e insatisfação com a performance de alguns de seus membros—o que fez com que a banda se livrasse de boa parte de seus antigos integrantes e adotasse uma bateria eletrônica no lugar de um baterista. Desde então, o grupo fez alguns shows pela Grande Vitória e teve músicas lançadas em importantes coletâneas do gênero, como De Profundis Vol. 4, Temple of Souls Vol. I & II e Post Generation, do músico Nenê Altro (Dance of Days). Todo o esforço inclusive lhe rendeu uma vaga num dos maiores festivais do gênero, o Woodgothic, que aconteceu em junho de 2017 na onírica cidade de São Thomé das Letras, em Minas Gerais.
De volta ao Espírito Santo e inspirada pela sua recente passagem pelo evento, a Fake Dreams resolveu imortalizar o momento e registrar as canções que havia composto até então. Para tanto, Kelly Tybel (vocalista), Clovis Monteiro (baixo) e João Depoli (guitarra) se reuniram com Angello Ferreira (teclados e programação) em seu estúdio, o Toca do Morcego, durante o final de 2017 e início de 2018 para proceder com as gravações do que se tornaria Sonhos. Ao final do processo, as canções foram mixadas e masterizadas pelo músico português Tiago Barbosa, no Dark Studio, em Lisboa, e a arte do projeto ficou por conta do designer gráfico Henrique Kipper, que, sob a direção da própria banda, se inspirou na aclamada série Sandman, do escritor Neil Gaiman (Stardust, Deuses Americanos, Coraline e mais), para chegar ao resultado final.
Fortemente inspirado pela sonoridade dos anos 80, Sonhos foi construído em cima das diferentes escolas musicais de seus quatro integrantes. Ao longo de seus 31 minutos, é possível identificar tanto a assinatura das bandas mais obscuras do movimento dark wave e da música eletrônica quanto uma pitada de metal lírico, punk e um pouco do indie rock da virada do milênio. Em termos líricos, o disco direciona o ouvinte a um universo de melancolia, dor e solidão, assim como magia, misticismo e sonhos.
Com a canção “Labirintos”, o álbum já coloca suas cartas na mesa logo de cara. Um compasso em que a bateria eletrônica é a única protagonista é seguido por uma simples linha de baixo com apenas duas notas. Logo mais, teclados devaneantes, harpejamentos de sintetizadores e guitarras violentas abrem caminho para a suave e profunda voz de Tybel. “Tudo passa diante dos olhos/ Sempre soube do seu falso amor/ Dançarás entre os mortos/ Antes do sol brilhar”, canta a vocalista em seu verso de abertura.
Na sequência vem o soturno single “Agonia Histeria”, disponibilizado ainda em março como um videoclipe. “A música fala sobre loucura e culpa”, disse Angello Ferreira na época de seu lançamento. “No clipe decidimos abordar um ambiente claustrofóbico e escuro para representar o tema. A falta de profundidade, uma única luz forte contrapondo flashes desconcertantes envoltos numa neblina transmitiu perfeitamente esse sentimento, gerando um impacto visual retrô porém moderno. A inspiração veio do clássico ‘Eraserhead’, de David Lynch”.
Saindo de um momento inquietante, o disco segue com uma atmosfera mais agitada com a explosiva “Olhos Mortos” e a fantasiosa “Próximo Mundo”, fruto de um sonho do baixista Monteiro. “Teorizando minha vida em um bar/ Sabendo que isso nunca vai acabar/ Irônica é a mente meus sonhos mudar/ Consumindo a morte sem esperar/ A linda loucura que vai me ceifar/ No fim os falsos sonhos será o meu lar/ O próximo mundo vai me alcançar/ O senhor dos sonhos virá me buscar”, canta Kelly em seu refrão, fazendo uma nova alusão à série de Neil Gaiman.
Com grandes acordes de piano, linhas de baixo firmes e edificantes, lamuriosos solos de guitarra e vocais melancólicos e angustiantes, “Entre Você e Eu” é o grande momento do disco. Uma épica canção de natureza sombria inspirada por uma despedida. “Quando eu me lembro da cor dos seus olhos/ Uma grande dor me aperta o peito/ E aumenta a vontade de te ter aqui comigo/ A lembrança do seu sorriso ainda mexe/ Teu aroma me faz lembrar rosas, canela e jasmim”, lamenta Tybel.
Pautada na variação de um único riff, “Gritos” é o momento mais dinâmico de Sonhos, sendo repleta de peso, urgência e um ritmo acelerado—uma combinação que funcionaria muito bem numa pista de dança. Ela também é a única das canções que leva a assinatura de todos os letristas do grupo, tendo sido composta num bar após uma noite de bebedeira desenfreada.
Perto de seu fim, o álbum entra na impressionante “Sonhos Falsos”, uma das faixas que melhor representa a proposta da Fake Dreams. Batidas envolventes, teclados fantasiosos, baixos sombrios, guitarras penetrantes e vocais intensos e melancólicos a definem. “Sozinha ela caminha/ Entre falsas promessas/ E falsos amores/ Mas ela sempre vai acreditar nos falsos sonhos/ No playground dos sonhos/ Entre falsos desejos/ Desistir de sua vida/ Mas ela sempre vai acreditar/ Nos falsos sonhos”, entrega Tybel em seu refrão final, deixando transparecer toda a dor do eu lírico antes da música explodir num derradeiro solo de guitarra e abrir caminho ao gran finale de Sonhos.
Em meio ao som de uma tempestade, sinos macabros e ruídos excruciantes, a tormentosa “Lembranças de Setembro” surge em toda a sua glória para encerrar o disco de estreia da Fake Dreams. Distintas linhas de guitarra e baixo juntas evocam uma marcha fúnebre que recebe vocais sanguinários e desesperançosos que discutem a perda. Indiscutivelmente a canção leva uma das mais belas letras já escritas pelo baixista Clovis Monteiro. “Com seus desejos de glória que inflam mesmo derrotados/ Seus cânceres que se tornaram em cárceres depravados/ De uma liberdade estranha, fria, enevoada por medos vis/ Entre as brisas de setembro que se perderam/ Com as mais puras lágrimas que se agitam/ Enchem sempre lagos nos atuais dias/ Tanto como o sopro da velha morte/ E se vão com as tristes lembranças de setembro”.
Sonhos sinaliza o encontro definitivo de expressões de músicos que não poderiam ser mais diferentes. Juntos, no entanto, eles conseguiram conceber um registro fiel ao momento em que se encontravam e construíram uma realidade alternativa de imaginação, magia e sonhos.
Embora a Fake Dreams hoje esteja estacionada com a saída de Kelly por diferenças criativas, o álbum fica como uma lembrança de um período de dor e solidão, mas também de sorrisos e conquistas. Um trabalho sólido de um quarteto que se dispôs a pelo menos tentar.
Escute abaixo o álbum na íntegra e não deixe de seguir a banda em suas redes sociais.
Texto: João Depoli | @joaodepoli.