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A longa e sinuosa estrada da fita cassete ao streaming

Como foram os longos e penosos anos ouvindo rock pela fitinha 60 minutos gravada na casa do amigo do amigo até o streaming de Spotify e Deezer
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Se você está aqui nesse site, é porque provavelmente ama música. Poucas coisas mexem tanto com a gente quanto ela. É primal, é tribal. Você lembra quando se apaixonou por música? Na infância, ouvindo os discos dos seus pais, ou talvez na adolescência, com ouvidos ligados no rádio? Se você tem menos de 30, é bem provável que nenhuma das duas opções.

Quando João me convidou para escrever no Inferno Santo, fiquei sem saber exatamente o que dizer, então me lembrei do meu tempo, quando moleque, ouvindo Secos & Molhados na Rádio Cachoeiro, tomando uma overdose de Luiz Gonzaga e Roberto Carlos na sala de casa, ou olhando incrédulo para a tela da tv que mostrava um Gene Simmons do Kiss cuspindo sangue, cantando “I Love It Loud” no Maracanã. Todo amante tem o momento em que se apaixona pela sua musa, e é por isso que hoje preparei uma cápsula temporal contando sobre uma época em que essa relação era um pouco mais complicada do que hoje em dia.

Recentemente me deram de presente uma assinatura do tal Spotify. “Tem tudo com somente 2 cliques!”, me disseram entusiasmados. Aceitei, testei e realmente é uma mão na roda se você não se importa em ouvir música pelo celular. Isso me acompanhou há pouco numa viagem à Bahia e me fez refletir em como as coisas mudaram desde que comecei a ouvir música a sério, como um fã de “rock pauleira”, como se dizia na época.

Curte um AC/DC? (Crédito: Ramallo via Pixabay).

Havia muito pouco disponível em 1984/85. Desse pouco, menos ainda chegava no meu Cachoeiro de Itapemirim. E desse pouquinho, eu e meus amigos tínhamos acesso a menos ainda. LPs eram caros, conhecia raríssimos fãs daquele tipo de música e qualquer coisa que chegasse aos nossos ouvidos era ouro — mesmo se fosse a mais completa porcaria.

Ficava namorando as capas de discos na loja, deslumbrado com a arte gráfica. Pink Floyd, Iron Maiden, Dio, Ozzy, Kiss, AC/DC… era fascinante, era perigoso, era quase proibido. Não era bem visto pela sociedade majoritariamente católica conservadora da época, e nossos pais odiavam — o que aumentava ainda mais a vontade de ter e ouvir. A velha história do fruto proibido. Mas nem toca-discos eu tinha, somente um 2×1 portátil onde ouvia as duas rádios FM locais e gravava fitas cassete toscas quando rolava alguma música legal na programação. Invariavelmente, perdia o início de todas, pois começavam sem qualquer aviso prévio. E foi nesse aparelho que passei um bom tempo ouvindo as fitas que gravava de amigos e da loja de discos local. “Não tem dinheiro pra comprar o LP? A gente grava pra você por 1/3 do preço”, elas anunciavam, embora muitas vezes a fonte era uma outra fita que já havia sido reproduzida incontáveis vezes e mal se ouvia o que estava tocando. “Esse é o Dio, saca só! Não, perae acho que é o Ozzy”.

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Alguém tinha uma fita com “Piece Of Mind” do Maiden, outro ganhou o “Powerage” do AC/DC de aniversário — “pode me emprestar pra eu gravar na casa do tio de um amigo?”. Já outro tinha “um rockão, cara, você vai pirar!” — era Ted Nugent. Eu gravava tudo em que conseguia colocar as mãos. Se alguém dizia que tinha um amigo no bairro tal que comprou o “Kiss da capa azul”, perguntava o nome e que ônibus pegar até lá. Saía de casa num sábado antes do almoço, pegava 2 ônibus pro tal bairro, subia o morro andando, passava a caixa d´água municipal e ia perguntando onde morava um tal Vitor que era roqueiro e tinha cabelo grande. Eventualmente encontrava a casa do sujeito, batia à porta, me apresentava e explicava o motivo da visita surpresa. Resposta: “sim, tenho um disco do Kiss, mas não empresto nem gravo, porque meu cabeçote tá fodido” — voltava pra casa de mãos abanando, todo suado e com fome. Quantas vezes passei por algo assim.

E havia o tal Metallica, de quem ouvíamos falar o tempo todo, mas ninguém tinha escutado. Todo novo amigo metaleiro que fazia já perguntava: “já ouviu Metallica?”, e a resposta era sempre negativa. Alguns pensavam que era banda brasileira, por causa da grafia e fonética meio latina. Demorou um tempão até finalmente ouvir algo deles: um amigo de um amigo de um amigo voltou de intercâmbio nos States e trouxe uma coletânea caseira em fita cassete, sem capinha, sem nome das bandas ou títulos das músicas. Nos disse que haviam duas músicas do Metallica gravadas. Ouvimos com atenção e aparentemente as identificamos, baseado na descrição que lemos na revista Metal: “Porra, massa! Metallica é foda mesmo!” — aconteceu que as duas canções que passamos meses ouvindo e achando que eram da banda de Lars e James eram na verdade dos ingleses do English Dogs. Falhamos miseravelmente.

O começo foi assim, e depois foi aos poucos mudando. Graças ao primeiro Rock In Rio, as gravadoras começaram a lançar mais discos no mercado brasileiro, mais fãs foram aparecendo, o “rock pauleira” foi se popularizando e fiz novos amigos de Vitória, Guaçuí, Vila Velha, Serra, Cariacica, Colatina. Era difícil, mas era legal. Bons tempos aqueles em que eu tinha 8 ou 10 álbuns gravados em fita e ouvia a mesma coisa, over and over, até literalmente gastar: “minha fita do Accept arrebentou, me empresta a sua pra gravar de novo?”.

Foi um longo caminho até os tais “2 cliques”, mas fico feliz de ter testemunhado tudo de perto.

Texto: Marcio Coelho | @marcio69coelho.

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