Henrique Mattiuzzi: “A sociedade não está tirando pontos positivos dessa pandemia.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Henrique Mattiuzzi sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Henrique Mattiuzzi ao vivo (Crédito: Divulgação).
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Em 2018, Henrique Mattiuzzi decidiu que faria da cultura a sua única fonte de renda. Rompeu então quaisquer laços formais que ainda seguravam a sua criatividade e mergulhou com tudo no universo da música. Chegou a tocar com nomes como Gustavo Macacko e Sunrise Blues Band, por fim se estabelecendo como o vocalista e guitarrista da banda de rock Amanita Flying Machine. Depois de um homônimo EP de estreia, Mattiuzzi agora segue com a pré-gravação do próximo lançamento do grupo.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de André Prando, Larissa Pacheco (Big Bat Blues Band), João Lucas Ribeiro (Muddy Brothers), Patricia Ilus e Marcus Luiz (Intóxicos) no terceiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Henrique Mattiuzzi: Fui pego de surpresa. No começo do mês de março não imaginava que passaríamos os próximos assim como estamos. Certamente não estava preparado para isso. Tinha boas agendas pela frente, festivais, viagens, projetos em andamento, ensaios, shows, enfim, projeções que ficaram no plano do adiamento sem data. Nós, agentes do cenário cultural, fomos um dos primeiros a sentir os efeitos do isolamento social. Nosso exercício depende das aglomerações, das casas de show, bares, do contato em grupo. É isso mesmo que tentamos provocar. O contato entre as pessoas, a reunião daqueles que apreciam a arte em comum. No início estava um pouco cético quanto ao isolamento social. Só fui perceber do que se tratava quando já estava acontecendo. Quando vi minhas gigs caindo uma a uma sem pestanejar, pensei em encarar a quarentena como momento de pausa, silêncio, do nada, do ócio criativo, da meditação, da interiorização. Finalmente digeri o pânico do isolamento social ao olhar o agora sem preceitos, visando começar o novo após a pandemia.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Em 2018 rompi com o trabalho formal e assumi a vivência artística em tempo integral, autônomo, sendo a cena cultural (eventos, bandas, festivais, bares, shows e gravações em estúdios) minha única provedora de renda. Desafio cotidiano o qual conquistava com segurança e leveza. Só que, quando se é autônomo, você ganha conforme a demanda. A pandemia fez do isolamento social a suspensão de toda a minha agenda. Sem demanda, fiquei sem renda. Nenhuma gig foi adiada ou ficou de ser remarcada, tudo foi suspenso mesmo, sem previsão de voltar. Não levo uma vida muito custosa, não tenho hábitos caros, quase não como carne, sei cozinhar, fazer pão e me divertir com o simples. Por direito, fui contemplado no auxílio do Governo Federal e no edital emergencial da Secult [Secretaria de Estado da Cultura], o que tem me deixado relativamente tranquilo financeiramente.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

De fato, as sociedades estão passando por algo inédito, o que gera comportamentos inéditos também. Vi colegas desamparados, tendo que voltar a morar com os pais, sem projeções, se desfazendo de conquistas que levaram anos. Ficou difícil para quem teve a cessão na fonte de renda. As contas, o aluguel, a fome, isso não cessa. A insegurança de estar passando por uma pandemia, junto à crise do sistema de saúde precário do país. A dúvida do após, a tentativa frustrada de organizar uma agenda, falta de planos, a economia retida, tudo isso pode gerar um desconforto psicológico. Bom, estou com minha cabeça tranquila, na verdade, entendendo o momento como uma pausa mesmo. Uma pausa necessária. Não dá para forçar. É respeitar o tempo da sociedade evoluir dessa fase ao tempo que tentamos nos reinventar com a ajuda dos aparelhos tecnológicos. Além de estar aproveitando o tempo para estudar música, praticar, compor, arranjar, ouvir novos sons, gosto também de cuidar de plantas, mudar as coisas da casa de lugar e cozinhar. Faz pouco tempo que ingressei num time de CS GO [risos]. Com a quarentena pude desenvolver melhor minhas habilidades no joguinho que é jogado em grupo. Assim acabo curtindo com os amigos no meio virtual.

“Não sei se estou sendo pessimista, mas acho que a sociedade não está tirando pontos positivos dessa pandemia.”

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Por uma questão de saúde pública, estamos vendo o Estado operando acima de nós com veemência. O governo e a imprensa estão difundindo a ordem de ficarmos em casa, evitar aglomerações, só sair para o que realmente for necessário. Não deixa de ser uma decisão imposta, e quem contraria essa ideia de quarentena tá fazendo papel de ridículo frente ao pensamento normal que vai no mundo agora. Considerando a carência estrutural do nosso sistema público de Saúde, entendo essa quarentena como um sacrifício coletivo em prol de uma minoria que pode ser salva com esse cuidado. Está sendo uma nova experiência. Pude perceber que, ao passar dos meses de quarentena, há uma grande vontade da abertura dos comércios por parte dos donos de loja — o que não corresponde à real necessidade dos consumidores. Acho que a pandemia e a quarentena estão fazendo a sociedade perceber que de fato somos uma sociedade. Vivemos em coletivo. Acredito que a maioria dos brasileiros estão a favor da quarentena para conter a pandemia. A opinião nem sempre é desvelada. Ela é manipulada, moldada, imposta e reproduzida. Acho que estamos num momento de obedecer ao que os jornais e governos estão impondo. Isso não deixa de ser verdade.

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Henrique Mattiuzzi, guitarrista e vocalista da Amanita Flying Machine (Crédito: Ellen Fleger).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Não sei. Realmente não sei. Alguns falam em legado deixado para a Saúde Pública, mas lembro que essa foi a “estória” dita para a infraestrutura do Brasil quando recebeu a Copa do Mundo de 2014. Não foi o que se aplicou. Tenho receio de que as pessoas se acostumem com esse distanciamento, com a carência do lazer, com o distanciamento físico. Tenho receio do Estado se tornar mais autoritário, declarando calamidade pública e os efeitos que isso pode ter. Pode ser que uma onda mesquinha paire sobre a sociedade e, por onde a gente for, vai ter álcool gel. Não sei se estou sendo pessimista, mas acho que a sociedade não está tirando pontos positivos dessa pandemia. Estamos torcendo para que passe logo. Ouvi relatos de pessoas com pânico de sair de casa, como se houvesse um bicho papão pronto para te pegar lá fora. Isso não faz bem. O isolamento social prolongado agrega problemas psicológicos que podem perdurar por anos.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Estou aproveitando a lacuna deixada pela falta de gigs para esvaziar a mente e os dedos. Não tenho nada à frente como obrigação. Isso faz com que a liberdade voe. Estou estudando harmonia, aprofundando a leitura das partituras, compondo e gravando demos. Tá sendo minha descoberta. Explorando demais campos da música, diferentes gêneros, réguas e ritmos.

“Que a sede pelo entretenimento, pela arte e pela cultura leve a galera a curtir e fazer valer os momentos juntos.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Já inventei um punhado de temas nesse período de quarentena. Inspirações desse proveitoso tempo. Além disso, estou caprichando nas prés para um novo disco da Amanita Flying Machine — que estava previsto para ser lançado em 2020. Apesar da incerteza do momento, continuo produzindo. Estou recluso, compondo, criando, estudando música, gravando demos e planejando lançamentos para o momento que sucederá a esse. Vale dizer que é preciso também se desligar dos meios virtuais para essa imersão introspectiva. Não dá pra ficar o tempo todo correndo atrás de notícia, senão surto [risos].

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Henrique Mattiuzzi (Crédito: Divulgação).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Espero que a música esteja sendo uma forte companheira das pessoas nesse momento de isolamento social. Nós, artistas do meio musical, estamos adaptando nosso trampo. O recurso de fazer transmissões online caiu como uma luva para atender os “quarenteners” espectadores. Acho muito legal a ideia das lives. Artistas do mundo todo estão contemplando seus fãs gratuitamente. Inédito essa coisa da galera fazer o show ao vivo para o pessoal assistir de casa. É uma experiência. O público está lá te assistindo, mas você não o está vendo, mas ainda assim o público interage. Tá sendo inovador. Eu gosto.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Espero que em 2021 não tenhamos o receio de sair para as ruas ou a preocupação de evitar aglomerações em festivais e eventos de qualquer tipo. Que os bares possam funcionar livremente sem restrições e as pessoas tenham acesso ao lazer com mente tranquila. Essas são minhas expectativas pra fase pós pandemia. Que a sede pelo entretenimento, pela arte e pela cultura leve a galera a curtir e fazer valer os momentos juntos.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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