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Leonardo Machado: “Não tem ‘normalidade’ pra voltar. Foi ela que nos trouxe até aqui!”

Músico e filósofo nos deixou profundas reflexões sobre o significado da pandemia para nossa vivência em sociedade
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Além de filósofo, Leonardo Machado é inquestionavelmente um dos mais talentosos e virtuosos guitarristas do Espírito Santo. Envolvido em diversos projetos musicais nos últimos tempos, meu destaque vai para os seus mais recentes projetos autorais, sobretudo como vocalista e guitarrista solo da Blackslug, que em 2018 lançou o feroz e urgente EP Old Habits Die Hard, e como o breve, porém certeiro baixista da Not So Bad, que em março fez sua estreia com o EP Out of the Bedroom.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens), Sandro Juliati (Volapuque, Mukeka di Rato), Gimu, Axânt e Everton Radaell (Auri) no quarto episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Leonardo Machado: O fato da gente ter acompanhado com alguma antecedência e ainda assim não ter se posicionado de uma maneira adequada politicamente agrava ainda mais a consideração, né bicho? Em primeiro lugar é isso: ver o que aconteceu e não aprender e não se adaptar de imediato já demonstra uma falta de interesse político grande — pra dizer o mínimo. Eu acho que ninguém tá preparado pra nada nessa vida. Acho que essa ilusão de estar preparado dá muito problema, na real. A gente pode perceber que há algumas pessoas que tentam estar despertas e observando as coisas como elas estão acontecendo e tentando aprender. E tem pessoas que estão completamente focadas na própria existência e em seus próprios projetos de felicidade. Então a tendência é esse segundo grupo, que é o mais numeroso [risos] — esse grupo não tava preparado pra nada e não dá pra estar, né? Agora, falando como alguém que tenta observar os processos e tal, a gente não tem como adivinhar o que que vai acontecer, mas quem tá estudando ciência e observando os momentos da sociedade, da política internacional e da produção industrial há algum tempo sabe que tem uma catástrofe pra chegar, né? Pode ficar enganando e falando ainda em nome do desenvolvimento econômico etc, mas a real é que, pelo menos desde a década de 70, desde o Peter Singer [filósofo e professor australiano que atua na área da ética prática] e várias outras críticas aí, a gente tá ligado que o sistema produtivo ia produzir esse tipo de coisa. Não era “se”, era “quando”. Eu não quero dizer que me sentiria preparado para nada, mas eu também não vou dizer que eu me sinto tomado completamente de surpresa por essa possibilidade, né? Tomei um susto sem dúvida disso chegar ao Brasil. O brasileiro é muito iludido, muito criado por uma coisa de que Deus é brasileiro, que as mazelas internacionais não chegavam aqui — aqui não tem terremoto, não tem guerra —, então o Bolsonaro ajudou a destruir um bocado desse mito aí também pegando carona na pandemia. Então agora isso chegou aqui, né velho? Por mais que eu não estivesse preparado, eu acho que, de novo, a adaptação daqueles que estão tentando observar e compreender o processo e que sabem que o conhecimento é algo fluido, é algo que está sempre em processo e que ninguém está certo e essa coisa toda, são pessoas que tendem a se adaptar, não apenas, mas a tentar se posicionar criticamente e a produzir conhecimento sobre isso.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Eu, pra ser bastante honesto com você, dei uma sorte danada, porque uma parte da minha renda está vindo das escolas particulares que estou dando aula de filosofia. As duas escolas, a bem ou mal, continuaram trabalhando. Inventaram aulas a distância e essa parada toda — sem querer entrar em todos os detalhes sociopolíticos disso e os privilégios de quem pode estudar nas escolas particulares etc, mas a minha renda básica e as minhas contas em geral ainda continuam pagas numa boa por conta dessas escolas. Mas, assim, sumiu a grana das práticas de yoga que eu dava por aí afora e, sem dúvida, sumiu grana de tocar, né bicho? Eu tô relativamente protegido por um contrato de trabalho que tá me atendendo aí em duas escolas e eu não tive que lidar diretamente com isso. Mas eu tô vendo vários amigos que se ferraram aí e estão dependendo de benefício, de inventar coisas, de fazer lives pra pedir contribuição voluntária pelo PicPay e esse monte de processo, que — longe de mim querer julgar qualquer um deles — são as respostas imediatas e são as formas que as pessoas tiveram pra lidar com isso na hora que apareceu. Felizmente, isso aí não me atingiu de maneira direta ainda.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Eu, desde muito antes da pandemia, já lido com a minha mente e com a minha realidade mental subjetiva nesse nível de autoprodução, digamos assim. Eu faço yoga, medito, trabalho o autoconhecimento comigo mesmo há um tempo, então essas coisas se intensificaram sem dúvidas. Passar mais tempo em casa consigo mesmo em quarentena torna mais evidente as nossas fraquezas, como também as nossas forças. Então tem momentos em que as coisas se agudizam: tem dias que dá uma tristeza profunda sem muita razão, tem dias que dá raiva das coisas sem nenhuma razão aparente. Mas, de uma maneira ou de outra, é assim que a nossa mente funciona mesmo, né? A gente só está numa condição um pouco mais adversa. Então, pra quem não está acostumado a lidar consigo mesmo em primeira pessoa, pra quem tá sempre acostumado a estar com muitas pessoas, estar muito ocupado e sempre fora de si, eu imagino que deve estar sendo um desafio extremo. Mas, claro que guardado as devidas proporções, de certa forma a minha rotina pessoal mudou muito pouco na real. Acostumado a estar dentro de casa estudando, meditando e produzindo eu estou há muito tempo já. O que faz falta é poder ter contato com os meus alunos nas escolas, é poder sair de noite e ir num barzinho e encontrar meus brothers, poder tocar… tem toda essa dimensão. Mas, na minha vida doméstica, ela só se transformou no todo da minha vida praticamente. Mas ela mudou muito pouco, porque eu já tinha esse hábito de lidar comigo mesmo e trabalhar coisas de autoconhecimento e autoconstrução, independente de benefício material. O que me dá força é meditação, yoga, arte, leitura e desenvolvimento.

“A gente não tem a menor ideia de quem a gente é.”

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Eu acho que essa é a pergunta mais relevante e a mais importante. Você começou com a relação de “alguns acharem que é um exagero” e coisa tal. Só o fato desse enunciado poder ser feito com naturalidade já demostra onde que a gente está no buraco, porque não é uma questão de “achar”. É uma questão de que existem inúmeros fatos, inúmeras perdas materiais e humanas, é uma fortuna crítica, uma produção de conhecimento de muito tempo da nossa ciência e agora específica desse momento. Então, assim, não é uma questão de opinião. É uma questão de realmente compreender onde que se assentam as bases da nossa sociedade, porque a gente vai pra escola aprender que a gente vive na sociedade livre, na sociedade da ciência e na sociedade do conhecimento, mas tem que lidar na vida real com o fato de que a gente vive com a realidade dos Coronéis de sempre — ainda mais a gente que é brasileiro, especificamente, que ainda tem que lidar com o fato de que a gente usa conceitos importados da Europa pra tentar explicar a realidade que os europeus produziram aqui. Então, claro, muitas coisas que a gente produz querendo produzir conhecimento pra nós mesmos, a gente acaba diminuindo a gente outra vez, se redimensionando com lentes que são europeias, que são norte-americanas. Então, assim, na real mesmo, o que isso significa pra nossa sociedade, a brasileira especificamente, é que a gente não tem a menor ideia de quem a gente é, a gente não tem a menor ideia do que a gente tá fazendo e que a gente continua dividido em pequenos grupos que estão completamente convencidos que sabem o que estão fazendo. Essa é a receita de uma bomba.

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Leonardo Machado no Festival Rock a Rock (Crédito: João Depoli).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Essa forma de pensar em positivo ou negativo, sobretudo de uma coisa que tá tão próxima assim, ela pode ser bastante problemática, né? Esse negócio de ficar vendo oportunidade em crise é coisa de neoliberal da Escola de Chicago. É canalhice, né? É evidente que depois que acabar com a crise vai ter um monte de trabalho pra fazer. É evidente que depois de morrer um monte de gente e o mercado ficar completamente esfacelado, qualquer coisa vai parecer ótima. Então a tendência depois de um período desse é aparecer trabalho pra todo mundo, é todo mundo começar a fazer as coisas e esquecer que acabou de passar por isso. Inclusive eu acho que é uma das estratégias que vai ser adotada pelo que vai acontecer no pós-governo depois dessa quarentena, porque, depois de uma treta dessas, tudo parece que é sol. Tudo parece que é trampo. Então a gente tem que tomar muito cuidado socialmente pra falar em termos de positivo ou negativo senão a gente entra nessa doidera de achar que é tudo oportunidade e dar sentido à morte de milhares dessa forma completamente capitalista e funesta. “Ah, morreram, mas foi bom, porque agora gerou oportunidades”. Claro que eu sei que não foi isso que você quis dizer, você está representando um jornalismo e isso tipo de pergunta é super comum, então saiba que não é nenhuma referência pessoal. A gente pode sim, aproveitar o momento pra fazer o que der pra fazer e, em níveis subjetivos, os indivíduos que estão em condições podem se aprofundar, estudar, meditar, se autoconhecer, se fortalecer, se preparar para o que vai vir depois. Isso aí tudo eu acho maneiro, mas tomando um pouco de cuidado com essa ideia de tirar coisas positivas da catástrofe, porque senão a gente pode passar rápido demais por ela e não deixá-la doer o tanto que tem que doer. Uma ferida que não dói o tanto que ela tem que doer não sara. Se a gente conseguir se reinventar e não destruir o planeta já seria ótimo pra algum “saldo positivo” disso daí [risos]. E acho também que, pra ser bastante honesto, qualquer consideração séria, positiva ou negativa, vai vir a médio ou longo prazo e tal. Agora é mera especulação. É mais desejo subjetivo do que que a gente gostaria que acontecesse logo que a pandemia acabasse do que propriamente algo com valor de conhecimento ou utilidade pública. Por enquanto é mais achismo e afetação subjetiva mesmo.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Por já estar na perspectiva de me autoconhecer há um tempo, eu não sei se eu tive alguma epifania, se eu fiquei de alguma forma completamente surpreso comigo mesmo em algum nível. Acho que não. Mas, de toda forma, o fato de passar muito mais tempo consigo mesmo amplifica e potencializa as nossas características, tanto boas quanto ruins. Então, se for pra eu tecer algum comentário nesse sentido, eu diria que eu tô não necessariamente completamente surpreso, mas um misto de surpreso e feliz de estar sendo capaz de manter uma prática comigo mesmo e de continuar buscando apreciar e dimensionar a existência da forma como for possível. Eu diria que, menos do que surpreso, mas uma certa satisfação comigo mesmo de ainda não ter começado a jogar a toalha [risos].

“Cuidado com essa ideia de tirar coisas positivas da catástrofe, porque senão a gente pode passar rápido demais por ela e não deixá-la doer o tanto que tem que doer.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Quando você fala de compor, ou do lance da criatividade demandar algum isolamento e tal, você tá certo. Quando a gente entra nas missões assim de — pelo menos pra mim, é claro — dar um mergulho subjetivo mais profundo pra criar e tal, aí geralmente passar algum tempo sozinho acaba sendo necessário. Então pra mim tá sendo bom nesse sentido aí — mais até do que propriamente da dimensão criativa estar mais aflorada ou não. Por eu estar tendo que passar muito tempo comigo mesmo e estar trabalhando, eu tô tendo que me forçar na real a exercitar a criatividade. Aquela coisa de ter ideias espontâneas, a maior parte de nós que mexe com arte tem. Mas aquela diligência de pegar uma ideia, desenvolver e aí preparar e começar a pensar nas partes, pensar no arranjo e chamar alguém pra fazer, essa dimensão, digamos assim, um pouco mais prática de continuar as ideias ou de levá-las a cabo, eu tô trabalhando bem mais isso. Eu estou tanto recebendo encomendas de amigos — “ah, eu tô gravando um negócio aqui e preciso de uma guitarra e tal” — quanto trabalhando algumas coisas minhas de mais de um projeto aí. Eu gosto de pensar que eu estou plantando sementes pra ver o que que pode crescer aí de arvorezinha nova no mundo pós-pandêmico, seja ele qual for, né? Então pra mim tá bem maneiro nesse sentido. Eu entrei o ano aí com o EP do Not So Bad terminado pra gente lançar e aí veio a quarentena e deu um monte de coisa e também eu já tava numa decisão pessoal, mesmo antes da quarentena, de lançar o EP com eles, mas não ficar na banda, porque esse ano é um ano que eu queria acertar umas contas comigo mesmo como guitarrista. Tô lidando com a minha obra como guitarrista, quero lançar umas coisas instrumentais e tô trabalhando mais nisso. Então eu já tinha decidido também não continuar com a banda, mas aí, apesar da quarentena não permitir nenhum tipo de trabalho concreto, só virtual, a gente lançou o EPzinho no começo do ano, em março. Foi legal pra mim pra caramba o tempo tocando baixo, compondo e fazendo outras coisas. Mas é isso. Entrei em 2020 querendo focar nos meus projetos mais guitarrísticos e instrumentais e acabou que, de certa forma, nesse sentido específico, embora eu odeie fazer essas formulações, a quarentena acabou me favorecendo. Eu realmente tenho um problema em dizer que a gente tá extraindo coisas boas da quarentena. Não posso dimensionar a realidade pela minha realidade subjetiva, né?

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Blackslug (Crédito: Daniel Eliziario).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Apesar dessa pergunta ser bem-intencionada e vai até dar uma amaciada no ego de vários artistas aí, eu acho ela muito pretensiosa, sabe? O que eu espero que o meu trabalho, seja musical, seja como professor, seja como minha existência como ser humano possa contribuir antes ou depois da quarentena são as mesmas expectativas. Eu quero ser uma influência positiva na realidade de quem encostar em mim. Seja um aluno, seja um amigo, seja uma pessoa do público que gosta da minha música. Eu não tô precisando da quarentena pra me redimensionar com ser humano nesse sentido não. Na verdade, a quarentena tá fortalecendo a minha convicção de que é muito necessário que a gente ressignifique essa nossa autoatribuição de valor subjetivo e comece a pensar de verdade no outro. Então o meu trabalho pode até ser irrelevante, olha o tamanho da sociedade, tá morrendo mil pessoas por dia. Então, assim, seria muito pretensioso da minha parte ficar pensando de que forma depois da quarentena eu posso contribuir, porque eu escrevi uma musiquinha que fala sobre sei lá quantas mil mortes, sabe? Eu acho que os artistas precisam ser um pouco mais sérios quanto a isso, senão a gente fica sempre reduzido a mera propaganda ideológica, que é como o grande aparelho nos vê: “ah, é musiquinha, musiquinha”.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Otimisticamente, eu acho que o convívio social vai passar a ter mais regras de comportamento do que a gente gostaria — principalmente brasileiro que não gosta de ter regra de nada. Acho que a lotação dos lugares e a rotatividade desse tipo de coisa vai precisar ser coordenada e controlada num nível que talvez o brasileiro não esteja preparado a se comportar dessa forma. Se nesse momento tem gente que nega a necessidade do lockdown, com mais de mil pessoas morrendo, imagina depois, quando isso estiver mais ou menos equacionado e diminuído? Acho que vai ter essa dimensão comportamental mesmo, de tentar regular as aglomerações e fazer com que a mobilidade urbana seja repensada. Isso vai ser uma necessidade, né? E os impactos disso pra cadeia são autoevidentes, né? Muita gente só compreende a arte a partir de números estratosféricos, então os eventos de massa que são desculpa pra muita coisa acontecer, pra muita prefeitura injetar dinheiro e pra muito artista gigante ficar circulando e tocar em eventos astronômicos pra produzir volume político, isso não vai acontecer. O Brasil depende de carnaval pra caralho, de micareta pra caralho, então a gente pode ter um enfrentamento social por causa disso. Tem gente que não querer desistir do próprio carnaval aglomerado, por exemplo, em nome da saúde de nada, sabe? Isso é gravíssimo. Agora quanto à própria cadeia produtiva especificamente em si per si, ela vai ter que se reinventar como ela sempre se reinventou. A gente nunca foi uma cadeia produtiva que foi pensada de dentro do sistema. Não é o Ministério da Cultura, não é nenhuma instituição que ajudou ou ajuda a música e o artista a inventar como é que ele vai trabalhar. É o contrário, né? É a gente que se rasga e inventa formas alternativas pra depois o governo vir e colocar o imposto, dizer que é dele e querer regular como que faz. O que a gente vai fazer é o que a gente sempre fez: criar novas formas de produzir e depois a gente vai entregar pro capital explorar outra vez.

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Outra coisa: algo que eu sinto necessidade de falar é esse uso viciado dessa palavra desgraçada que é “normal” ou “normalidade”, sabe? Uma boa parte das pessoas interessantemente úteis e inteligentes estão se minando mantendo na própria cabeça uma ideia de que tem um “normal” pra se voltar, bicho. Acham que tem uma “normalidade” pra se voltar, sabe? E eu não tô falando isso só no sentido de que a pandemia ela é realmente um novo traço social que vai gerar um monte de consequências daqui pra frente. Também, mas tô dizendo sim que é um marco. Vai ser um mundo pré e pós-Covid na boca de vários historiadores sim, mas tô tentando chamar atenção pra uma outra dimensão que eu acho mais profunda, que é a dimensão ideológica desse “normal”. O que um monte de gente tá chamando de “normal” é uma certa estrutura de conforto com a qual elas foram educadas, mas só que ninguém disse pra elas — ou se disseram, elas não ouviram — que aquela estrutura de conforto que ela foi acostumada a chamar de “normalidade” foi produzida a partir da destruição e da não-normalidade da vida de várias outras pessoas, quer a gente queira, quer não. O conforto do Ocidente, essa nossa vida boa, sempre demandou um nível de exploração muito grande da natureza e de outros indivíduos em outros locais do mundo. Tá todo mundo aí feliz, porque compra coisa barata no xingling — nos anos 80 era de Taiwan, do sudeste asiático e tal. Então, assim, essa porra do “voltar pra normalidade”… Não tem “normalidade” pra voltar! E, mesmo se tivesse, ela não deveria ser interessante, porque a gente tinha que aproveitar a pandemia pra, no mínimo, perceber que tudo isso é responsabilidade nossa. Foi a “normalidade” que nos trouxe até aqui.

Texto e foto de capa: João Depoli | @joaodepoli.

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