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Quarentalks: Episódio 04

Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens), Sandro Juliati (Volapuque, Mukeka di Rato), Gimu, Axânt, Leonardo Machado (Blackslug) e Everton Radaell (Auri) falam sobre os desdobramentos da quarentena no quarto episódio da série
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Está no ar o quarto episódio da Quarentalks, uma série que criei para trazer uma nova abordagem ao Inferno Santo durante esse período de quarentena. Trata-se de uma tentativa de recorte do período de pandemia e os seus desdobramentos na música e na vida de bandas e artistas nativos ou residentes do Espírito Santo. Em cada episódio eu converso com seis deles sobre os dias de isolamento social e juntos refletimos sobre seus desdobramentos.

No primeiro eu falei com Ana Müller, Dan Abranches, Juliano Gauche, Cainã Morellato (Cainã e a Vizinhança do Espelho), Rafael Braz (Auria) e Hugo Ali (Broken & Burnt). Já no segundo, as reflexões ficaram por conta de Fabio Mozine (Mukeka di Rato), Fepaschoal, Gabriela Brown, Thiago Stein (DOZZ), Luíza Boê e Edson Sagaz (Suspeitos na Mira). Enquanto isso, o terceiro episódio reuniu João Lucas Ribeiro (Muddy Brothers), André Prando, Larissa Pacheco (Big Bat Blues Band), Patricia Ilus, Henrique Mattiuzzi (Amanita Flying Machine) e Marcus Luiz (Intóxicos).

Hoje a conversa segue com Gabriela Terra, líder do My Magical Glowing Lens (que em 2017 lançou o álbum Cosmos); Sandro Juliati, vocalista das bandas Mukeka di Rato e Volapuque (que no ano passado soltou seu homônimo debut); Gimu, o antigo vocalista e guitarrista da terrorturbo e atualmente um implacável artista solo, com dezenas de discos já lançados (com destaque ao seu mais recente, Susurrus, que saiu em abril); Axânt, rapper do proeminente selo capixaba Setor Proibido e com um EP de estreia agendado para o próximo dia 17; Leonardo Machado, vocalista e guitarrista da Blackslug e último baixista da Not So Bad (que acaba de lançar o EP Out of the Bedroom); e Everton Radaell, vocalista e guitarrista da Auri (que em 2018 lançou Resiliência).

Suas respostas foram editadas para criar uma dinâmica de diálogo ao texto e suas entrevistas individuais estarão disponíveis na íntegra na próxima sexta (10) e segunda-feira (13) — bem aqui. No mais, é isso. Deixe rolando a playlist abaixo que preparei com os participantes deste episódio e divirta-se enquanto lê a matéria.

Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Axânt: Acho que ninguém tava preparado pra tudo isso que vem acontecendo.

Leonardo Machado: Eu acho que ninguém tá preparado pra nada nessa vida. Acho que essa ilusão de estar preparado dá muito problema, na real.

Sandro Juliati: Isso pra mim não era de se cogitar mesmo. Sempre tive mais medo de tragédias à nível global, tipo tsunami, guerra nuclear, falta de água potável, poluição extrema etc.

Everton Radaell: Quando chega a hora de encarar uma determinada situação, mesmo que haja uma antecipação da notícia, a gente nunca está preparado psicológica e emocionalmente.

Leonardo Machado: O fato da gente ter acompanhado com alguma antecedência e ainda assim não ter se posicionado de uma maneira adequada politicamente agrava ainda mais a consideração, né bicho?

Sandro Juliati: Eu não consigo deixar de ficar perplexo diante do que estamos passando.

Gabriela Terra: A gente tinha todas as instruções para agir de modo a não morrer tanta gente, pois vimos como aconteceu em outros países, mas decidimos fazer o oposto.

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Leonardo Machado: [Isso] demonstra uma falta de interesse político grande, pra dizer o mínimo.

Axânt: Ninguém sabe ao certo o que vai ser daqui pra frente, principalmente com a gestão patética do governo atual.

Sandro Juliati: Fico ainda mais “perplecto” com grupos fanáticos que insistem em negar as autoridades sanitárias e ovacionar políticos desvairados e fascistas.

Gabriela Terra: Tem como digerir isso? Tá entalado na garganta ainda.

Leonardo Machado: O brasileiro é muito iludido, muito criado por uma coisa de que Deus é brasileiro, que as mazelas internacionais não chegavam aqui — aqui não tem terremoto, não tem guerra —, então o Bolsonaro ajudou a destruir um bocado desse mito aí também pegando carona na pandemia.

Gimu: Olha o Brasil o que virou. Quando voltaremos a ser “somente” aquela caca que éramos antes de tudo o que aconteceu de 2018 para cá?

Gabriela Terra: Parece um pesadelo coletivo que não conseguimos acordar, sei lá. É de embrulhar o estômago. Muitas pessoas valorizam mais uma nota de 2 reais do que uma vida — e ainda se dizem cristãos, homens e mulheres de bem.

Gimu: Ter que lidar com um país que me mata de vergonha [e que está] lotado de pessoas que fazem a gente sentir muito ódio diariamente é um troço que adoece. Odiar é muito ruim!

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Gimu (Crédito: Divulgação).

Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Sandro Juliati: Não é nada fácil.

Gimu: Haja pagamento no PicPay [risos]!

Axânt: A única solução é se adaptar.

Gimu: Eu não faço planos. Faz tempo que simplesmente vivo (sobrevivo?). Não há nenhuma paz nisso. Vai que quem esteja lendo isso aqui pense que eu sou um daqueles que viu a luz… vi nada. Vi a conta de luz e caí duro [risos]!

Gabriela Terra: Eu toco um estilo incógnito de música autoral. Eu sempre vivi assim, sem dinheiro, sem poder fazer planejamento a longo prazo. Sempre vivi muito no presente, então aprendi a me virar com o que tenho. Mas eu sou privilegiada, tenho casa e não me falta comida.

Leonardo Machado: Eu tô relativamente protegido por um contrato de trabalho que tá me atendendo aí em duas escolas e eu não tive que lidar diretamente com isso. Mas eu tô vendo vários amigos que se ferraram aí e estão dependendo de benefício, de inventar coisas, de fazer lives pra pedir contribuição voluntária pelo PicPay e esse monte de processo.

Everton Radaell: O que mais tem me pesado tem sido sobre as atividades e planos, porque o isolamento acaba reduzindo as possibilidades.

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Sandro Juliati: Estamos todos assimilando isso, e talvez a ficha não tenha caído totalmente. Pra quem tem teto, segurança alimentar, água encanada, acesso à tecnologia e inclusão digital, eu acredito que é menos doloroso, mas também deixa suas marcas profundas.

Gabriela Terra: Eu não tenho nada pra falar sobre isso senão que esse presidente é um merda e que o governador do estado, senhor Casagrande, deveria enfrentá-lo.

Axânt: Infelizmente o governo age no descaso com a população de periferia e o futuro é incerto.

Gabriela Terra: Algo drástico tem de mudar faz décadas, séculos e ninguém faz nada realmente eficiente pra mudar — e quando faz, é assassinada.

Sandro Juliati: Temos de ligar um estado de alerta permanente: cuidados minuciosos na higiene, reinvenção de nosso cotidiano e geração de renda, exigência de políticas públicas de qualidade não só na saúde, mas na educação, cultura, direitos humanos, segurança, infraestrutura etc.

Gabriela Terra: Eu acho que a alternativa vai ser a gente montar sociedades alternativas, grupos com um novo modelo econômico, pois se depender dessa corja da “grande” política a gente tá f*d*d*… O lance é a micropolítica. Apoie suas amigas e amigos microempreendedores, compre da pessoa que fabrica, faça feira, compre orgânicos, pague bem seus funcionários, pare de juntar tanta grana, pare de usar sua mulher, pare de ser um otário.

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Gabriela Terra (Crédito: Victória Dessaune).

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Leonardo Machado: Passar mais tempo em casa consigo mesmo torna mais evidente as nossas fraquezas, como também as nossas forças. Então tem momentos em que as coisas se agudizam.

Everton Radaell: Tem sido uma montanha russa pra mim — [passo] dias bem e outros nem tanto.

Gimu: Todo dia levo um papo com meu cérebro, porque até agora não entendi.

Leonardo Machado: Faz falta poder ter contato com os meus alunos nas escolas, poder sair de noite e ir num barzinho e encontrar meus brothers, poder tocar… tem toda essa dimensão.

Everton Radaell: Nós somos seres adaptáveis, mas toda essa situação se deu de uma forma muito repentina e tem sido algo muito novo pro nosso emocional e mental associar sem de fato ”quebrar”.

Leonardo Machado: Tem dias que dá uma tristeza profunda, tem dias que dá raiva das coisas sem nenhuma razão aparente.

Axânt: Tenho que lidar com crises de ansiedade e preocupações em algumas situações, mas procuro voltar toda minha atenção pro meu objetivo principal e investir tempo na música.

Gimu: Ocupar-se é o grande lance.

Axânt: Tento me manter focado e sempre ter algum objetivo à frente pra não perder o pique.

Everton Radaell: Acho que é uma época que nos convida a olhar tudo com novos olhos e de uma outra perspectiva. Que nos força a aprender e entender que precisamos caminhar de uma maneira mais devagar e que tá tudo bem em ser assim.

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Leonardo Machado: Eu faço yoga, medito, trabalho o autoconhecimento comigo mesmo há um tempo, então essas coisas se intensificaram sem dúvidas.

Axânt: Antes disso tudo acontecer, eu descarregava todo estresse e ansiedade fazendo esportes. Agora, minha rotina se baseia em ir de casa pro trabalho (estúdio) e do trabalho pra casa.

Gimu: O trabalho — que não dignifica porra nenhuma — já come várias horas minhas todos os dias, aí eu vou usando TV, celular, computador, tem Genoveva [sua cadela], Edin [seu marido], e o tempo vai passando e nem vejo!

Sandro Juliati: Assim que entrou a pandemia, meu trabalho foi suspenso — agora que houve uma retomada. Antes disso eu consegui organizar muita coisa procrastinada em casa, desenvolver projetos online, conviver mais com minha pequena filha, valorizar mais as amizades e amores — mesmo distantes.

Gimu: Já li dois livros na quarentena e tenho outros me esperando. Estou viciado em playlists dos 100 “maiores sucessos” da Billboard de 1981, 82, 83, 84, 85, 86, 87 etc. Me sinto lá naqueles anos desconfortáveis — mas que de longe ficam parecendo uma coisa assim toda poética e romântica. Ando tão sem paciência para explorar discos novos, sabe? Fico puto comigo mesmo! Mas acho que é porque tem sido uma fase para ler e não para ouvir.

Sandro Juliati: Tive pouco apetite para leitura e nenhum pra me exercitar — não sei por que. Por outro lado, acho que nesse período assisti mais documentário de música do que vi em minha vida inteira.

Gabriela Terra: Revi toda a minha vida, me sensibilizei com coisas que não me sensibiliza verdadeiramente, comecei a ver coisas que não via e a rever coisas que já via com mais clareza e de outro modo. Tudo mudou dentro de mim.

Everton Radaell: Essa pandemia deixou claro ao meu ver quais são as coisas que de fato importam nessa vida e quais as que mais nos fazem falta.

Axânt: Tento me manter saudável mentalmente e diria que minha força motriz é e sempre foi deixar minha família bem de vida e ver meus amigos bem.

Gabriela Terra: Passei a me amar mais e entender que o que eu falava com 12 anos — em ser uma vendedora de flores e querer montar uma sociedade alternativa — foi a ideia mais lúcida que já tive até hoje.

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Confira as reflexões do terceiro episódio da série (Fotos: Herone Fernandes Filho, Luara Zucolotto, Fernando Yakota, e Divulgação).

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Leonardo Machado: Não é uma questão de opinião.

Everton Radaell: Não é algo que afeta só o ”eu”, mas sim o ”nós”. Toda escolha tomada perante a pandemia deve ser feita de maneira responsável e entendendo quais são as suas consequências.

Sandro Juliati: Existem escalas de impacto diferentes de acordo com a classe, etnia, gênero e território onde as pessoas vivem. Não somos todos atingidos da mesma forma.

Leonardo Machado: É uma questão de realmente compreender onde que se assentam as bases da nossa sociedade, porque a gente vai pra escola aprender que a gente vive na sociedade livre, da ciência e do conhecimento, mas tem que lidar na vida real com o fato de que a gente vive com a realidade dos Coronéis de sempre, ainda mais a gente que é brasileiro, especificamente, que ainda tem que lidar com o fato de que a gente usa conceitos importados da Europa pra tentar explicar a realidade que os europeus produziram aqui.

Gimu: Tanta coisa é tão burra ainda nesse tal SISTEMA.

Sandro Juliati: Nós como sociedade estamos tendo a oportunidade de reconhecer a importância de se ter um sistema público forte e democrático pra aguentar uma peteca dessa aí.

Gabriela Terra: O congresso deveria aprovar a impressão de dinheiro e todo mundo que não tem um serviço extremamente necessário à vida deveria ficar em casa recebendo auxílio, com pena de multa se sair mais de uma vez por semana de casa.

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Gimu: Eu realmente espero que o Brasil entenda de uma vez por todas que muitas pessoas não precisam mais sair de casa para trabalhar, que já dá para realmente estarmos no futuro nesse aspecto. Existe essa coisa velha, embolorada, leis, regras, sei lá o que, que a gente tem que sair de casa para trabalhar. Puxa vida! Pensa em como seria bom para o planeta um mundo de gente trabalhando em casa, sem usar carros, o que não seria gasto de energia, água etc.

Sandro Juliati: Creio que esse momento pode significar uma possibilidade de balanço, análise sincera de coisas apodrecidas que vivem entre nós e que matam mais que o corona, como a necropolítica aplicada pelos rentistas.

Axânt: Acho que esse momento difícil, como todos os outros que a humanidade já enfrentou, é um momento de aprendizado. Um momento pra gente repensar nosso lugar e dimensão no mundo tão grande e redescobrir nossa humanidade. Num momento em que milhares de pessoas morrem, se tornar mais humano é uma lição valiosa.

Gimu: Eu quero um mundo lotado de pessoas sensacionais e quero sentir cheiro de amor no ar, amor em profusão no ar. Todas as coisas maravilhosas que têm a ver com o que chamamos de amor. Tem como? [risos].

Leonardo Machado: A gente não tem a menor ideia de quem a gente é, a gente não tem a menor ideia do que a gente tá fazendo e a gente continua dividido em pequenos grupos que estão completamente convencidos que sabem o que estão fazendo.

Gabriela Terra: As pessoas estão loucas. Elas falam: “ah, mas eu não estou no grupo de risco”. Mas se você pega o vírus, mesmo que você não morra, você o transmite para alguém que pode estar no grupo de risco e essa pessoa pode vir a falecer. As pessoas estão se mostrando extremamente inconsequentes e egoístas. É assustador.

Leonardo Machado: Essa é a receita de uma bomba.

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Leonardo Machado (Crédito: João Depoli).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Leonardo Machado: Essa forma de pensar em positivo ou negativo, sobretudo de uma coisa que tá tão próxima assim, ela pode ser bastante problemática, né? Esse negócio de ficar vendo oportunidade em crise é coisa de neoliberal da Escola de Chicago. É canalhice, né?

Sandro Juliati: O neoliberalismo não se justifica mais sob nenhuma hipótese nesse quadro, mas ele ainda é um estandarte em riste nos espaços de poder e decisão.

Leonardo Machado: É evidente que depois de morrer um monte de gente e o mercado ficar completamente esfacelado, qualquer coisa vai parecer ótima.

Sandro Juliati: O impacto socioeconômico com o aumento de desemprego e pobreza aumentará o quadro de desigualdade que já era crítico.

Leonardo Machado: Então a tendência depois de um período desse é aparecer trabalho pra todo mundo e todo mundo esquecer que acabou de passar por isso. Inclusive eu acho que é uma das estratégias que vai ser adotada pelo que vai acontecer no pós-governo.

Gabriela Terra: A gente é inteligente. Somos capazes de perceber isso tudo sem passar por tanta coisa ruim. A gente já deveria estar aprendendo pelo amor e não pela dor.

Gimu: Esse papo de gentileza e calor humano serem características do nosso povo… aham, na outra vida. Chega dessa falácia. Somos nada. Não existe mais tempo para o Brasil ser o país do futuro. As cores já foram mostradas junto com as caras e acredito que essa ruptura não tem mais volta. Para o bem e para o (muito) mal.

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Gabriela Terra: Os movimentos negro e indígena estão com mais voz e tem algumas outras coisas positivas também, mas muito pequenas perto do que está acontecendo de ruim. A taxa de feminicídio aumentou, a desvalorização da vida está escancarada em todos os cantos. Seguimos ignorantes.

Leonardo Machado: Tomando um pouco de cuidado com essa ideia de tirar coisas positivas da catástrofe, a gente pode sim aproveitar o momento pra se aprofundar, estudar, meditar, se autoconhecer, se fortalecer e se preparar para o que vai vir depois.

Everton Radaell: Acredito que o isolamento e a pandemia nos trouxeram mais clareza sobre o que de fato é importante e o que não é.

Sandro Juliati: Tá nítido também — só não vê quem não quer ou ganha com isso — que é o suor e as mãos trabalhadoras que constroem a riqueza acumulada.

Axânt: Nos momentos mais difíceis que o instinto humano vem à tona, e é nesses momentos que se vê os dois lados de uma mesma moeda. Acredito que o lado da empatia, humanidade e amor ao próximo podem ser pontos positivos tirados desse período.

Gimu: Espero que brasileiros entendam que é necessário fazer certas coisas.

Leonardo Machado: Se a gente conseguir se reinventar e não destruir o planeta já seria ótimo pra algum “saldo positivo” disso daí [risos]. E, pra ser bastante honesto, qualquer consideração séria, positiva ou negativa, vai vir a médio ou longo prazo. Agora é mera especulação.

Sandro Juliati: Se a ciência e o jornalismo pautados na ética vingarem, e se não for uma jogada oportunista dos liberais ao keynesianismo, talvez tenhamos a chance de desenhar um mundo menos injusto, mais solidário e sensível às questões sociais de nosso dia a dia.

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Sandro Juliati em tempos de pandemia (Crédito: Autorretrato).

Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Leonardo Machado: Por já estar na perspectiva de me autoconhecer há um tempo, eu não sei se eu tive alguma epifania ou fiquei de alguma forma completamente surpreso comigo mesmo em algum nível. Acho que não.

Gimu: Mudou absolutamente nada. Não é um horror? [risos]. Mas eu sempre tive muito tempo para mim e para as minhas coisas, mesmo tendo dois cargos. Sempre dei um jeito.

Gabriela Terra: Tudo mudou e ao mesmo tempo nada mudou. É muita teoria e pouca prática. Penso demais e faço de menos. E olha que eu faço bastante coisa, mas ainda é pouco.

Leonardo Machado: De toda forma, o fato de passar muito mais tempo consigo mesmo amplifica e potencializa as nossas características, tanto boas quanto ruins. [Há] uma certa satisfação comigo mesmo de ainda não ter começado a jogar a toalha [risos].

Sandro Juliati: A dimensão bioquímica da nossa existência ficou muito mais gritante pra mim. O contato físico e a aglomeração social ficaram mais evidentes como engrenagens da vida. Descobri que músicas como “O mundo é um moinho” (Cartola) e “Rumo dos Ventos” (Paulinho da Viola) são mais que hinos, são guias e luzes pra atravessar esse turbilhão.

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Axânt: Acho que o que mudou foi o jeito de ver as relações pessoais.

Everton Radaell: Nesse período, eu meio iniciei alguns projetos que vinha alimentando interesse faz algum tempo e tive meus primeiros trabalhos como produtor musical.

Axânt: Descobri que sou capaz de me adaptar e prosperar em momentos de dificuldade e que a gente não é nada e sabe bem pouco do mundo.

Gabriela Terra: É muita coisa que tem que mudar. É muito chão ainda pra gente se tornar pelo menos a metade daquilo que precisamos ser pra vivermos em equilíbrio com a Terra.

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Já está no ar o segundo episódio da Quarentalks.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Gabriela Terra: Sim, tenho produzido muito. Eu já tinha separado essa época pra produzir as demos do disco novo, então tudo se encaixou pra mim. Sou grata todos os dias por isso. Mas não dá pra glamourizar a produtividade em tempos de pandemia. A tristeza de saber que tem pessoas morrendo pelo Covid, outras nas ruas passando frio e fome, sendo mortas pela polícia, agredidas pessoalmente e na internet — como sempre teve — não me deixam em paz.

Axânt: Por incrível que pareça, tem sido muito favorável produzir e criar em momentos de caos. Tô numa fase muita intensa de criação. Já lancei 5 músicas esse ano, entre feats e trabalhos solos. Tenho um EP de 5 músicas 100% pronto pra ser lançado e já tô trabalhando em um novo projeto.

Sandro Juliati: Somente a escrita que me surge na maior parte das vezes isoladamente. Colocar ela em bases musicais sempre foi pra mim um trabalho coletivo.

Everton Radaell: Especificamente sobre a Auri, não tanto, pois nosso processo acaba sendo muito colaborativo e coletivo. Mas tenho conseguido me ocupar contribuindo e ajudando em/com outros projetos, bandas e artistas da cena, seja na produção de capas, vídeos, direção ou produção.

Gimu: Passei meses sem fazer nenhuma música. No final do ano passado me obriguei a começar a criar coisas novas, já que é algo que me dá muito prazer, uma grande diversão. Fiz um monte de coisas. As canções mais serenas já foram lançadas em um álbum chamado Susurrus [2020] e as outras estão por aqui, no computador.

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Leonardo Machado: Por eu estar tendo que passar muito tempo comigo mesmo e estar trabalhando, eu tô tendo que me forçar na real a exercitar a criatividade. Aquela coisa de ter ideias espontâneas, a maior parte de nós que mexe com arte tem, mas aquela diligência de pegar uma ideia, desenvolver e aí preparar e começar a pensar nas partes, pensar no arranjo e chamar alguém pra fazer, essa dimensão um pouco mais prática de continuar as ideias ou de levá-las a cabo, eu tô trabalhando bem mais isso.

Gimu: Estou todo enrolado com coisas da faculdade, um monte de relatórios, provas, ihhh… nessas horas sou o mesmo Gilmar de sempre que foge de tudo que pode fugir: tudo que exige muito de mim. Já sei que depois que faço tudo, me sinto super bem. Não sei por que não faço tudo logo.

Sandro Juliati: No Volapuque, temos lançado teasers toda semana divulgando o álbum de estúdio que gravamos ano passado e o Mukeka di Rato tem relançado edições anteriores em vinil. Tenho dado assessoria e consultoria de produção cultural à galera do Circo e também do rap na minha região e minha antiga banda, Pönvéi, já soltou uma live/tributo e lançaremos outras em breve.

Leonardo Machado: Eu entrei o ano aí com o EP do Not So Bad terminado. A gente o lançou no começo do ano, em março, e foi legal pra mim pra caramba o tempo tocando baixo, compondo e fazendo outras coisas. Mas é isso. Entrei em 2020 querendo acertar umas contas comigo mesmo como guitarrista. Quero lançar umas coisas instrumentais e tô trabalhando mais nisso.

Everton Radaell: Trabalhei num single chamado “Aurora”, da banda The Man With No Color, que vai ser o seu debut na cena e tem sido um trabalho que estou muito orgulhoso do resultado final. Também produzi o primeiro single do artista Felipe Bertrand, chamado “Tudo Vai Dar Certo” e estou dirigindo o clipe de um single do projeto solo do José Daniel, vocalista da Últimos Mustangues, que deve retomar a gravação pós pandemia. Também fiz a captação de imagem através do estúdio Bravo para alguns trabalhos de outras bandas e artistas capixabas e tenho feito vídeos pra uma empresa de pedais de efeito daqui bem massa chamada VTR Effects.

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Everton Radaell (Crédito: Yvã Santos).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Everton Radaell: Eu gosto quando a arte é usada de maneira que venha a somar e ajudar na vida das pessoas. Acredito que ela é uma ferramenta poderosíssima e de fato pode salvar alguém quando sua mensagem é canalizada e usada com esse propósito. Então espero que essas produções que tenho feito, sejam elas musicais ou visuais, possam ser escape para amenizar todo esse caos e ajudem as pessoas a passarem por essa situação de uma maneira melhor.

Axânt: A música tem um papel muito importante de orientação, informação e opinião, além de ser um forte pilar cultural. Durante a quarentena a gente tenta mostrar o lado bom em meio ao caos, sempre confrontando e questionando o que é posto como verdade absoluta. Então espero que meu trabalho possa alcançar, informar e fortalecer de alguma forma quem ouve.

Gimu: Quem tem interesse na música que faço busca nela algum tipo de refúgio. É o que eu busco nos discos que amo desde sempre, ou naqueles pelos quais me apaixono. Minha relação com música sempre foi intensa e minha vida foi moldada por bandas, discos e canções. Faço discos esperando que quem os ouça tenha essa mesma relação.

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Leonardo Machado: Seria muito pretensioso da minha parte ficar pensando de que forma depois da quarentena eu posso contribuir, porque eu escrevi uma musiquinha que fala sobre sei lá quantas mil mortes, sabe? Eu acho que os artistas precisam ser um pouco mais sérios quanto a isso, senão a gente fica sempre reduzido a mera propaganda ideológica, que é como o grande aparelho nos vê.

Sandro Juliati: Condenar a idiocracia, defender a diversidade, solidariedade, e políticas públicas com protocolos de consulta sérios será sempre minha missão, seja na cultura, educação, pesquisa, assistência social e ações diretas. Se não perder essa verve crítica no caminho, acredito que poderei contribuir para pessoas não sucumbirem às aberrações em voga.

Leonardo Machado: O que eu espero do meu trabalho, seja musical, seja como professor, seja como minha existência como ser humano, são as mesmas expectativas. Eu quero ser uma influência positiva na realidade de quem encostar em mim, né? Seja um aluno, seja um amigo, seja uma pessoa do público que gosta da minha música. Eu não tô precisando da quarentena pra me redimensionar com ser humano nesse sentido não. Na verdade, a quarentena tá fortalecendo a minha convicção de que é muito necessário que a gente ressignifique essa nossa autoatribuição de valor subjetivo e comece a pensar de verdade no outro.

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Axânt (Crédito: Divulgação/Facebook).

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Axânt: O pós-quarentena é meio incerto, ninguém sabe como vão ser as coisas.

Gimu: Sabe que em nenhum momento parei para pensar sobre isso? Eu estou curioso para ver como o mundo vai se ajustar.

Axânt: Procuro não criar muitas expectativas sobre coisas que eu não sei. Acho que o segredo tá em viver dia após dia sem pensar muito lá na frente.

Gabriela Terra: Não faço ideia. Vai demorar a voltar, por causa da irresponsabilidade dos nossos líderes políticos e das pessoas egoístas que apoiam eles. Quando tudo voltar, vai ser aos poucos. O risco de morte vai continuar alto, porque as pessoas se recusam a fazer o isolamento social. Por isso teremos mais tempo de isolamento. Parece uma piada de mau gosto, mas é isso.

Leonardo Machado: Eu acho que o convívio social vai passar a ter mais regras de comportamento do que a gente gostaria — principalmente brasileiro que não gosta de ter regra de nada.

Gimu: É muito triste que tantas pessoas já tenham morrido e que tantas ainda morrerão até que uma vacina apareça e estejamos livres de mais essa. Fico pensando sempre em até quando eu durarei. A gente e a mania de se achar eterno.

Gabriela Terra: Fica em casa quem puder, quem não puder, se cuida, por favor. Se não for por você, que seja por poder transmitir o vírus pra alguém que tem medo de morrer. Tem gente morrendo por causa de você não querer ficar em casa. Se você não dá valor a vida, respeite quem dá.

Leonardo Machado: Se nesse momento tem gente que nega a necessidade do lockdown, com mais de mil pessoas morrendo, imagina depois, quando isso estiver mais ou menos equacionado e diminuído?

Sandro Juliati: Acredito que teremos um aumento das atividades virtuais e imagino que não serão possíveis aglomerações em lugares fechados tão cedo. Isso muda muita coisa e é um aprendizado que podemos ter/tecer a partir da experiência do que foram as pandemias anteriores, pra não repetirmos erros e medidas sem fundamento científico.

Axânt: Tenho certeza que a arte vai resistir e continuar exercendo esse papel tão importante na sociedade.

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Everton Radaell: A música é feita por pessoas e para pessoas. Acho muito importante esse contato e troca física. É graças a ele que conhecemos novos lugares, novas pessoas, vivências e temos experiências fora da nossa bolha e zona de conforto. Acho isso fundamental para nosso crescimento como artistas e seres humanos.

Axânt: A demanda de shows e festivais vai aumentar depois desse período longo de quarentena e isolamento social.

Sandro Juliati: Creio que teremos que nos basear num diálogo constante e profundo com as orientações e medidas sanitárias para encontros presenciais com aglomeração no período pós-pandemia.

Leonardo Machado: Isso vai ser uma necessidade, né? E os impactos disso pra cadeia são autoevidentes. Muita gente só compreende a arte a partir de números estratosféricos, então os eventos de massa, que são desculpa pra muita coisa acontecer, pra muita prefeitura injetar dinheiro e pra muito artista gigante ficar circulando e tocar em eventos astronômicos pra produzir volume político, isso não vai acontecer.

Gabriela Terra: Não acho que vai ter nenhum carnaval.

Leonardo Machado: O Brasil depende disso pra caralho, então a gente pode ter um enfrentamento social por causa disso. Isso é gravíssimo.

Sandro Juliati: Eu acho bacana algumas análises atuais, que apontam que não haverá uma volta à “normalidade” que regia o nosso mundo, nos moldes anteriores — Slavoj Zizek e David Harvey pra mim são certeiros ao tratar desse tema.

Leonardo Machado: A cadeia produtiva vai ter que se reinventar como ela sempre se reinventou. A gente nunca foi uma cadeia pensada de dentro do sistema. Não é o Ministério da Cultura, não é nenhuma instituição que ajudou ou ajuda a música e o artista a inventar como é que ele vai trabalhar. É o contrário, né? É a gente que se rasga e inventa formas alternativas pra depois o governo vir e colocar o imposto, dizer que é dele e querer regular como que faz. Então o que a gente vai fazer é o que a gente sempre fez: criar novas formas de produzir e depois a gente vai entregar pro capital explorar outra vez.

Entrevistas individuais e na íntegra com cada um destes artistas podem ser lidas bem aqui.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.
Foto de capa: Victória Dessaune, Yvã Santos, João Depoli e Divulgação.

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