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Quarentalks: Episódio 01

Juliano Gauche, Cainã Morellato, Ana Müller, Dan Abranches, Rafael Braz e Hugo Ali falam sobre os desdobramentos da quarentena no primeiro episódio da série
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Depois de um longo tempo adormecido, hoje sim posso dizer que o Inferno Santo está realmente de volta. Apresento a vocês a Quarentalks, série que elaborei na tentativa megalomaníaca de fazer um retrato desses tempos absurdos de pandemia e os seus reflexos na música feita por bandas e artistas nativos ou residentes do Espírito Santo.

Nessas últimas semanas eu tive a oportunidade de conversar com diversos músicos, sempre buscando contemplar os mais variados sons e caminhadas. Devo dizer que não foram conversas focadas prioritariamente em noticiar um lançamento ou explicar um determinado trabalho, mas sim em captar o lado humano dessas pessoas num momento tão particular da nossa história.

Nesse primeiro episódio conto com a participação de Juliano Gauche, cantor e compositor de Ecoporanga, mas que atualmente vive em São Paulo, onde consolidou sua carreira solo com três álbuns e o recente EP Bombyx Mori (2020). Também conversei com Cainã Morellato, frontman do grupo linharense Cainã e a Vizinhança do Espelho, que fez sua estreia com O Último Disco do Ano (2018) e agora segue nos preparativos de seu segundo álbum.

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Eu também tive o prazer de entrevistar a cantora e compositora Ana Müller, que no ano passado surpreendeu a todos mais uma vez com Incompreensível, um belíssimo disco repleto de sentimentos e maturidade. Além dela, a esse grupo alia-se o talentoso Dan Abranches, cantor e compositor cuja carreira solo já lhe rendeu o EP Ruby (2017), uma recente passagem pelo The Voice Brasil e dois novos singles só neste ano — “Dark Cloud” e “Get This Off”.

No espectro da música mais pesada, duas singulares personalidades fecham este primeiro grupo. Uma delas é Rafael Braz, jornalista e vocalista da banda de hardcore Auria, cujo retorno foi adiado devido à pandemia, nos deixando com o urgente álbum Nicolas Cage (2015). A outra é Hugo Ali, vocalista e guitarrista da Broken & Burnt e baterista da Blackslug, que falou comigo direto da China — sim, da China, sua casa desde o segundo semestre de 2018.

Antes de começar, devo só avisá-los que cada episódio da Quarentalks contará com seis artistas e será publicado sempre às quartas-feiras. Como vocês logo perceberão, as respostas foram editadas de modo a criar uma dinâmica de diálogo e proporcionar uma sensação de proximidade entre leitor e entrevistado. As respostas completas de cada um destes participantes serão publicadas em matérias individuais às sextas e segundas (três artistas por dia).

Sem mais delongas, abaixo segue uma quimera destas conversas. Deixe a playlist adiante rolando e boa leitura.

Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Juliano Gauche: Como tudo que acontece fora do Brasil, essa informação parecia distante demais da nossa realidade.

Rafael Braz: Pra ser sincero, eu só fui ter noção do que significaria isso quando vi a situação de Itália e Espanha. Os casos na China me pareciam um pouco distante, admito.

Hugo Ali: Eu passei férias no Brasil e retornei à China no final de janeiro. Começamos a ouvir falar sobre o que estava acontecendo em Wuhan [cidade onde foram identificados os primeiros casos da doença] dias antes do meu retorno. Num primeiro momento, ninguém achou que seria algo da magnitude que acabou sendo.

Ana Müller: É uma situação bem surreal a que estamos vivendo, os dias passam e tudo fica cada vez mais bizarro.

Dan Abranches: Foi estranho nas primeiras semanas ficar em casa, mas o que é mais estranho é realmente não saber. Não ter perspectiva de futuro, do que eu vou fazer mês que vem, de como que eu vou me sustentar, pagar minhas contas, aluguel.

Cainã Morellato: Ainda não deu pra digerir tudo o que significa a quarentena de fato, porque a gente não passou por um lockdown, por exemplo — e provavelmente vamos passar.

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Juliano Gauche: Demorei umas duas semanas para aceitar que não tinha mesmo o que fazer a respeito. E até hoje, quando a ideia de que tem um vírus à solta matando tanta gente me pega no meio de um afazer, é um choque.

Ana Müller: Mas não estarmos preparados não significa não compreender a importância de cumprir o isolamento. É absurdo ver como a maioria das pessoas seguem achando que é exagero.

Rafael Braz: Obviamente não imaginei que teríamos o pior “líder” mundial para conduzir um país no meio de uma pandemia. Hoje vejo os países europeus reabrindo e não consigo imaginar que façamos o mesmo, em uma situação de segurança real, nos próximos meses.

Hugo Ali: As regras em Chongqing (onde eu residia na época) foram bem duras, porém se provaram eficazes após dois meses. Houve um controle rígido, onde apenas um habitante de cada residência podia sair de casa uma vez a cada dois dias pra fazer compras.

Ana Müller: Manter a sanidade em meio ao caos é um desafio.

Cainã Morellato: Certamente é um ciclo de muito aprendizado.

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Juliano Gauche (Crédito: Ellen Flegler/Divulgação).

Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Rafael Braz: É meio desesperador, né?

Dan Abranches: Financeiramente muito difícil e muito desesperador.

Ana Müller: Tem dias mais fáceis e dias mais difíceis. Os boletos não param de chegar, compromissos feitos antes da pandemia agora batem na porta e aqui a gente tá, se desdobrando pra conseguir manter tudo em ordem.

Juliano Gauche: Meu custo de vida é baixo. Meus direitos autorais ainda estão entrando — um pouco mais reduzidos, mas estão entrando. Isso e outras entradas menores aqui e ali me garantem o necessário.

Cainã Morellato: Eu tenho buscado solução e tenho buscado ser criativo. Rever os planos, rever as prioridades.

Ana Müller: Tento não cair no desespero, é um dia de cada vez. Ter uma rede de apoio nesse momento é muito importante.

Rafael Braz: É complicado, mas temos plena ciência de que estamos em uma situação muito mais confortável do que a maioria da população.

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Juliano Gauche: Tendo em vista a realidade da grande parte do nosso povo, meus problemas ficam minúsculos.

Ana Müller: Eu tinha reservas, mas e as milhares de pessoas que nunca tiveram condições de ter reservas? Mais do que sobreviver neste período, é preciso ajudar outras pessoas, pensar em estratégias, comprar de comerciantes locais, oferecer ajuda às famílias em vulnerabilidade.

Juliano Gauche: Esse joguete que estão fazendo com a saúde pública, as complicações com o auxílio emergencial e a indústria de desinformação promovida pelos aliados do presidente é que tem me deixado angustiado. Isso está nos levando a um caos assustador.

Ana Müller: É preciso ter calma, ter paciência, ter consciência dos privilégios.

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Ana Müller (Crédito: Sarah Outeiro).

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Hugo Ali: Houve sim muita incerteza e ansiedade. Um aplicativo local nos dava os números de infectados, suspeitos e mortos em tempo real, além de mostrar a distância que você estava de algum caso confirmado. Assistir os números escalarem em velocidade bizarra foi também um desafio.

Cainã Morellato: Eu tive muitos problemas no início — na realidade mais pro meio — de ansiedade, de pânico, de … enfim, problemas pessoais. Mas realmente foram coisas que precisavam ser resolvidas, sabe?

Dan Abranches: Eu não tive muitos problemas em relação a depressão. Meu problema é sempre a ansiedade e essa questão financeira que está muito incerta.

Ana Müller: Eu tenho conseguido manter minha cabeça no lugar a maioria do tempo. No meio do ano passado eu comecei um tratamento psicológico e isso fez muita diferença agora, meio que me preparou psicologicamente pra tudo isso.

Cainã Morellato: Acho que o convívio extremo consigo mesmo te obriga a olhar para lugares em que você geralmente não olharia ou que deixaria passar ou que procrastinaria uma decisão. Minha adaptação tem sido encarar isso e me tornar uma pessoa melhor.

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Rafael Braz: Não tem sido fácil, nem um pouco. O trabalho me mantém ocupado boa parte do tempo, mas pra mim rola uma coisa particular: ver filmes e séries, que é o que muitas pessoas têm feito como escape nesse período, pra mim é trabalho. Então, às vezes tenho a impressão de estar preso numa bolha de trabalho.

Hugo Ali: O mais difícil foi a sensação de estar vivendo o mesmo dia várias vezes, a lá Groundhog day.

Juliano Gauche: Nesse ponto eu estou tranquilo. Nos últimos anos eu andei mergulhando fundo nas filosofias espiritualistas. Já estava mesmo vivendo mais recluso. Meus últimos discos, Afastamento e Bombyx Mori, já eram um reflexo disso.

Ana Müller: Eu sempre fui uma pessoa mais isolada, sempre fui de sair pouco, tenho os mesmos poucos amigos há muitos anos, todo mundo que me conhece, conhece também minha natureza meio eremita.

Rafael Braz: O mais difícil tem sido ficar longe dos nossos pais e sobrinhos, sem dúvida alguma, mas sinto também muita falta dos ensaios com a banda. Deixei de lado algumas leituras mais pesadas e tenho resgatado livros de Rubem Fonseca pra ler — a morte dele me fez lembrar o quanto gostava de sua obra.

Ana Müller: O que me afeta bastante é ver os efeitos desse vírus no nosso país, a quantidade de pessoas morrendo todos os dias, as milhares de pessoas que ignoram a importância do isolamento, essa loucura que acomete o homem que deveria liderar o país e proteger os brasileiros, ver ideias fascistas e nazistas ganhando força é enlouquecedor. As notícias é que devastam nossa sanidade.

Rafael Braz: Eu, como parte da imprensa, sei o quão pesado está sendo o noticiário para o público, mas acredite, pra quem trabalha nele está ainda pior.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Ana Müller: Tá cada vez mais difícil entender as pessoas. Parece que o Brasil vem vivendo um período de insanidade.

Rafael Braz: Acho que é um momento que expõe o quão imbecil e egoísta pode ser um lado da moeda.

Hugo Ali: De fora me parece claro que falta posicionamento da parte do Governo Federal.

Juliano Gauche: Essa mistura de egoísmo e preguiça de pensar é que está protagonizando essa resistência mórbida.

Ana Müller: Aqui é o único lugar do mundo que as pessoas querem protestar pelo fim do isolamento. É um absurdo, é preocupante, é um negócio que me desespera.

Rafael Braz: Eles vão ao extremo de colocar a própria saúde (e a dos outros) em risco e estão piorando uma situação gravíssima pra defender um governo fascista pra quem eles são apenas massa de manobra.

Hugo Ali: Infelizmente, acho que se o Brasil quer passar dessa, vai precisar de políticas mais justas em relação ao isolamento. Até o momento foi feito um isolamento parcial, e o resultado está claro.

Rafael Braz: O isolamento absoluto é complicado, porque atinge uma parte da população que está trabalhando por pura necessidade/obrigação patronal, mas se tivesse sido adotado há mais tempo, talvez estivéssemos agora em uma situação bem melhor, quiçá de reabertura.

Hugo Ali: Que o isolamento é ruim para a economia, é óbvio. Porém os que são contra não parecem contabilizar que a economia poderia ter sofrido a metade do dano se uma medida mais séria tivesse sido adotada há alguns meses.

Dan Abranches: Entra o caso da desigualdade social, né? Acho que para algumas pessoas não mudou nada mesmo.

Rafael Braz: Num cenário mais macro, acho que estamos tentando entender, e talvez essa seja a grande luta, que a saúde pública vem antes da economia. Claro que um colapso econômico gera uma crise ainda maior, mas colocar essa conta na preocupação com a saúde não é justo; não é o isolamento que está causando isso, é o Coronavírus.

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Juliano Gauche: A resistência ao isolamento, em grande parte, vem de quem não consegue abrir mão do seu conforto em prol do coletivo. Uma outra parte está sendo manipulada, assim como foram nas eleições, e não tem estrutura mental para resistir a isso.

Rafael Braz: Vivemos uma situação limítrofe pra caralho e acho que teremos muitas cicatrizes disso tudo, como tem sido com tudo nos últimos anos. As eleições expuseram ódios e preconceitos em diversas pessoas e até hoje eu não consigo ter relações próximas com nenhuma delas. Acho que teremos algo parecido.

Juliano Gauche: Infelizmente, tudo indica que aprenderemos da pior maneira possível que estamos todos conectados. Que o bem de um é o bem de todos.

Ana Müller: Acho que esse é o momento de reconhecermos quem realmente compreende e dá importância ao senso de coletividade. Agora a gente enxerga quem votou por ignorância e quem é de fato mau caráter.

Hugo Ali: Precisamos mudar a forma de jogar esse jogo e abolir as fake news. Já passou da hora também de cair a grande ficha de quem ainda consegue apoiar o “governo” Bolsonaro.

Ana Müller: Se tivéssemos um líder neste momento, quem sabe não teríamos tantas perdas, quem sabe as famílias em vulnerabilidade teriam mais atenção.

Juliano Gauche: Esse momento está nos pedindo, justamente, que pensemos no outro.

Cainã Morellato: É um período necessário de encarar tudo. De se encarar como ser humano, de se encarar como sociedade, de se encarar como comunidade.

Dan Abranches: Ao mesmo que eu vejo muitos problemas nessa pandemia, eu vejo também muita gente se ajudando, muita gente doando e muita gente se movimentando para ajudar.

Cainã Morellato: Significa para nós, como sociedade, encarar o que nós temos e avaliar se a gente tá dando o nosso melhor e sendo a melhor versão de uma sociedade.

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Cainã Morellato (Crédito: Autorretrato/Divulgação).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Rafael Braz: Cara, acho complicado.

Dan Abranches: É difícil falar sobre momento positivo quando tem tanta gente morrendo na fila do hospital e tanta gente passando muita dificuldade.

Hugo Ali: Com tantas fatalidades é até difícil pensar em pontos positivos.

Dan Abranches: Quem trabalha no comércio, quem trabalhava com qualquer tipo de emprego mais informal, quem trabalhava nas ruas vendendo coisas… Acho que tem muita gente sofrendo.

Cainã Morellato: Pensar que a gente já se acostumou com um número tão grande de brasileiros e brasileiras morrendo. Pessoas com sonhos, com trajetórias, com histórias, com famílias, simplesmente perdendo a vida por descaso de um governo sádico que na maior pandemia da história recente não tem um Ministro da Saúde, cara. Como é que pode isso, né?

Ana Müller: Existem famílias e pessoas que não vão conseguir tirar nada de positivo nisso tudo, que estão sem renda, que tiveram seus auxílios negados, que perderam entes queridos, que estão passando por um período de extrema vulnerabilidade.

Cainã Morellato: Respeitando essas pessoas, mas ainda reconhecendo o momento que a gente tá vivendo, eu tenho uma frase da minha mãe que eu gosto muito que diz: “O mau sempre está a serviço do bem”.

Ana Müller: Sempre tem um lado positivo quando a gente pensa no todo.

Hugo Ali: Sinto que as relações, mesmo que virtuais, se tornaram um pouco mais humanas. A privação momentânea nos mostra o que realmente faz falta.

Juliano Gauche: Tem muitas lições sendo dadas nessa pandemia. Que a nossa força está no povo. Se o povo para, tudo para. Que as empresas, sem o trabalhador, não têm poder nenhum. Que as igrejas são um negócio — vide o desespero na falta do dízimo, insistindo em querer manter seus fiéis aglomerados em tempos de pandemia.

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Cainã Morellato: Será que a gente tá sendo parceiro o suficiente? Será que a gente tá sendo empático o suficiente? Acho que de positivo a gente pode tirar o que tá se evidenciando tão claramente, como as prioridades erradas.

Juliano Gauche: Quando não estamos sendo pressionados pelo sistema capitalista, podemos nos ver como realmente somos.

Rafael Braz: Podemos rever alguns hábitos de consumo, alguns gastos excedentes, e não digo nem de grandes coisas não, mas tipo… eu realmente preciso de tanto tênis ou de tanta camisa? Se conseguirmos rever nossas práticas capitalistas, já acho um proveito gigante.

Ana Müller: Algumas pessoas vão aproveitar este momento para se autoanalisarem, outras vão notar que precisam de ajuda, outras vão desenvolver talentos que não faziam ideia, outras vão se aproximar da família.

Dan Abranches: Eu tô parando mais pra contemplar. Viver um dia de cada vez, sabe? Isso tem sido interessante, mas não dá pra excluir tudo o que tá acontecendo só porque eu tenho um lugar de privilégio.

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Rafael Braz nos vocais da banda Auria (Crédito: Mariana Perim).

Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Dan Abranches: Eu tô me conhecendo muito, muito, muito… Como nunca me conheci antes. Tá sendo bem interessante entender que eu não preciso de certas coisas.

Juliano Gauche: Acho que tudo isso só tem intensificado minhas escolhas. Um desaceleramento amplo se fazia cada vez mais necessário.

Dan Abranches: Eu posso levar uma vida muito mais simples, muito mais tranquila e tem sido muito bom.

Hugo Ali: Eu descobri que preciso estar ocupado. A pior coisa que pode acontecer é se sentir sem objetivo.

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Rafael Braz: Eu descobri que não sou tão antissocial quanto sempre acreditei ser. Tenho sentido muita falta de amigos e familiares.

Ana Müller: Descobri que, apesar de toda a minha natureza isolada, eu gosto de ver as pessoas. Mesmo que eu não saia muito, gosto de saber que as pessoas estão por aí, vivendo, rindo, se divertindo.

Rafael Braz: Também tem sido importante entender que cada um tem sua luta e lida de maneira diferente com ela.

Hugo Ali: Com certeza algo mudou e as pessoas descobriram algo sobre si.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Cainã Morellato: Sim, cara. Muito. Principalmente na vida do artista independente, como é o meu caso. Eu já preciso fazer outras coisas pra ganhar dinheiro naturalmente. Então, num momento em que a banda também é cortada como fonte de renda, eu preciso me virar. Mas também ganhei mais tempo para poder estar em casa e fazer essas coisas

Hugo Ali: Eu sempre tive esse perfil de trabalhar sozinho em ideias iniciais e demos mal gravadas. Durante a epidemia tive muito tempo pra trabalhar em dois projetos em que estou envolvido.

Rafael Braz: Tem sido foda, porque o Auria estava num processo aquecido de composição pro novo disco. No isolamento, cada um reagiu de uma forma. O Murilo [Almeida, ex-Dead Fish] entrou sedento na banda e se tornou uma máquina de composições durante esse período. Sem brincadeira, temos material pra um disco duplo. É uma pena estarmos cada um em sua casa, pois talvez seja uma das fases mais criativas da banda em 15 anos.

Hugo Ali: Trabalhei muito com Igor Comério nas mixes do Shitsunami — ele trabalhou bem mais [risos]. Também finalizamos o EP da 你妈买啤酒 (ni ma mai pi jiu), que é uma banda que toco punk rock com outros estrangeiros em Chongqing.

Dan Abranches: Eu passei por vários períodos. Fiz um EP de quarentena que tá quase pronto — produzido todo na minha casa. No segundo mês eu fiquei com muita ansiedade, não fiz quase nada, e nesse terceiro mês eu voltei aos meus projetos, porque não dá pra ficar parado, né?

Ana Müller: Eu estava produzindo muita coisa antes do isolamento obrigatório. Tenho umas 20 músicas novas compostas. Quando a pandemia começou por aqui, me senti meio que obrigada a produzir e isso gerou muita ansiedade.

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Dan Abranches: Eu gosto de estar mais isolado e com um pouco do ócio pra compor, mas eu parei por vários períodos. Quando a ansiedade tá batendo muito forte, não dá pra gente compor nada, porque tem mais preocupações do que habilidades e liberdades criativas na nossa cabeça.

Ana Müller: Essa obrigação de ser produtivo o tempo inteiro é infernal e eu saí dessa neura. Agora é um período pra fazer o que você quiser (desde que esteja isolado), então se não quiser fazer nada, não faça nada. Não é obrigatório ser produtivo.

Juliano Gauche: Eu estava dando uma respirada nesse último ano. Contando com meu trabalho no Solana, posso dizer que gravei sete discos, um atrás do outro. Agora tô aproveitando este tempo para organizar todo meu material.

Rafael Braz: Tenho tentado trabalhar também no projeto de um livro sobre os 30 anos do Dead Fish. Tenho algo escrito, algumas entrevistas feitas, mas não tenho ficado satisfeito com o resultado de nada que escrevo dele. Vou tentar retomá-lo mais uma vez pra ver o que sai.

Juliano Gauche: Fiz isso com meus textos também e acabei de lançar três livretos. Tenho me dedicado a desenhar mais. Só não estou compondo, por enquanto. Mas todo o resto tá fluindo lindamente.

Ana Müller: Essa era tecnológica tirou do ser humano a benção do ócio, a beleza de ficar deitado olhando pro céu por horas. A gente não sabe mais ficar quieto sem nenhum estímulo, a gente precisa estar o tempo inteiro sendo estimulado por alguma coisa, sendo distraído por alguma coisa, trabalhando em alguma coisa, aprendendo, sendo útil.

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Hugo Ali (Crédito: Demetrius da Silva).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Cainã Morellato: Diante dos protestos que estão acontecendo, das manifestações antirracistas, antifascistas e as pessoas dando voz a essas coisas, eu confesso que eu sinto que às vezes falar sobre e divulgar o nosso trabalho e querer que ele se propague num momento desses é até meio soberbo, sabe? Meio estranho.

Rafael Braz: Cara, não sei. Espero que dê um ânimo a quem escolher ouvir o que produzimos, ou que talvez possam tirar algo positivo de alguma letra.

Hugo Ali: Durante o período de quarentena, os projetos contribuíram com minha saúde mental e me mantiveram ocupado [risos]. Pra depois desse momento, eu não tenho expectativas. É botar no mundo e ver no que dá.

Ana Müller: Eu espero que meu trabalho artístico seja sempre útil para as pessoas, seja num momento de pandemia ou não. Fico feliz de através da minha música expressar sentimentos que as pessoas querem expressar também. Gosto de saber que minha música faz pensar, causa alguma transformação.

Dan Abranches: O que eu posso fazer no momento é usar a minha exposição para divulgar projetos que estão realmente ajudando muita gente. E eu espero que a minha música conforte.

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Ana Müller: Enquanto artista e figura pública, eu espero dar visibilidade para as pessoas e para causas necessárias para a população.

Cainã Morellato: Eu acredito que a arte, como expressão e como ferramenta de conexão, tem esse poder de contribuição nesse momento e também no pós, sabe? Eu gosto muito da inspiração e da efervescência que isso causa nas pessoas. Elas se tornam mais aptas a se relacionar, sabe? Pela saudade de estar junto.

Ana Müller: Eu espero sempre poder dar voz para causas importantes, como o feminismo, o movimento antirracista e a causa LGBTQ+. Quero ser sempre um canal de transmissão de ideias de igualdade e de amor fraternal.

Juliano Gauche: Minha música, assim como meus textos, apela muito para a vida interior. Trabalha muito com o psicológico e o emocional. Acredito que uma concentração nesses pontos, agora e daqui pra frente, será cada vez mais saudável.

Rafael Braz: Sobre meu trabalho como jornalista, espero que o conteúdo de cinema, séries e música que eu escrevo sirva para dar uma quebra no noticiário tão pesado.

Cainã Morellato: Eu espero que no pós-quarentena as nossas músicas ressoem nas pessoas pela naturalidade de se conectar como ser humano, identificar as dores e as angústias de um momento tão doido como esse.

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Dan Abranches (Crédito: Divulgação).

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Ana Müller: Essa é uma pergunta ainda sem resposta. Nas minhas conversas com a galera da cultura, artistas, produtores culturais, trabalhadores da cultura em geral, ninguém sabe ainda como será, o que esperar, o que vamos fazer.

Juliano Gauche: Que a arte, de uma forma geral, ganhe o respeito que ela merece. Imagine este momento sem música, sem filmes, sem livros…

Ana Müller: Não temos um Ministério da Cultura, não temos um presidente que se importa com isso, enfrentamos tempos muito sombrios na área da cultura não é de hoje, e agora com essa pandemia é difícil conceber expectativas.

Juliano Gauche: Minha maior expectativa é que possamos voltar aos palcos mesmo. Quando e como, que seja da forma mais segura pra todo mundo. E essa forma mais segura é difícil prever por enquanto. Tudo isso terá que ser estudado com o decorrer do impacto da pandemia.

Rafael Braz: Acho que essa talvez seja a grande questão disso tudo, né? Enquanto não houver uma vacina, há um consenso de que conviveremos com a doença por algum tempo. Grandes eventos, de aglomeração, festivais… acho que só pra 2021, se tudo correr bem.

Cainã Morellato: As minhas expectativas são para que a gente encontre novas soluções. Que a gente consiga usufruir das ferramentas que a gente sempre teve à nossa disposição, mas que não olhava muito por conta do ritmo da vida e da forma tradicional como as coisas costumavam acontecer.

Dan Abranches: Acredito que seja possível fazer shows virtuais e mudar um pouco a forma que era feito, né? Vai tudo pro mundo virtual e é isso, porque eu não acredito que esse isolamento vá acabar tão cedo. Pelo menos não esse ano pra gente que trabalha em aglomerações. A gente tem que se atualizar, mudar a forma com que a gente fazia as coisas e se adaptar a esse novo momento do mundo.

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Cainã Morellato: A arte, no fim, é um meio de conexão, né? No sentido mais puro, é o que ela promove. A internet, por exemplo, também é uma ferramenta de conexão. Acho que essas duas coisas juntas… A gente ainda não descobriu tudo que dá para fazer.

Dan Abranches: Acho que é esse o momento de mudanças, né? Eu já tô avistando um novo mundo de possibilidades, que é o mundo virtual, que é uma tendência. Talvez ela tenha sido apressada por esse acontecimento, mas é uma tendência.

Rafael Braz: Acho que vamos ver as lives permanecerem após o pico passar, porque rendem uma grana aos artistas e as empresas estão aprendendo a capitalizar em cima delas também, então veremos produções cada vez maiores que talvez possam até substituir os DVDs Ao Vivo, sei lá.

Cainã Morellato: Eu encaro isso como um desafio para a nossa criatividade: poder inventar novas formas de se conectar e usar a internet como um catalisador de conexões reais e novas formas de criar e divulgar o trabalho.

Rafael Braz: Acho a live legal, uma saída, um alento, mas estou acostumado a consumir esse tipo de música ao vivo. A live não me supre isso e eu acabo não tendo a paciência pra ficar vendo ali. Eu realmente não sei, cara.

Ana Müller: Quando a hora chegar, nós vamos nos reinventar, nos apoiar e fazer acontecer, seja como for. “O show tem que continuar”.

Hugo Ali: Como aqui a engrenagem já está rodando normalmente, eu vi que o retorno é muito bonito. Os primeiros eventos pós-quarentena foram indescritíveis. Muita energia acumulada e uma vibe fantástica. Acho que fica aberta a porta das lives e outras formas de interações online, mas fica muito claro que nada substitui o poder contido na aglomeração de pessoas que buscam na música algum tipo de refúgio.

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Entrevistas individuais e na íntegra com cada um destes artistas podem ser lidas bem aqui.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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