Fernando Zorzal: “O negacionismo é uma doença que devemos combater.”

Leia na íntegra o papo que tive com Fernando Zorzal sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Fernando Zorzal (Crédito: Ligia Buzin).
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Fernando Zorzal é um cantor e compositor capixaba que em 2016 lançou seu primeiro álbum cheio, Cidade Alta, um conjunto de dez músicas com traços popescos e fincado no movimento tropical folk. Poucos anos depois, ele e sua esposa, Francesca Pera, deram origem ao seu projeto atual, o duo A Transe. Sua estreia aconteceu no ano passado, quando lançaram Hora Dourada, um disco produzido pela multi-instrumentista Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens) e considerado “um trabalho cativante que não apenas cumpre seu propósito com eficiência e autenticidade, como merece crédito adicional por se propor a elevar o espírito do ouvinte sem a menor ressalva”, como publicou o Road To Cydonia.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e saiba quais são suas reflexões sobre esses últimos meses de pandemia. Aproveite também para ler as entrevistas com outros artistas capixabas que participaram da série Quarentalks clicando aqui.

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Francesca Pera (esq.) e Fernando Zorzal do duo A Transe (Crédito: Ligia Buzin).

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Fernando Zorzal: Não estava preparado, de maneira alguma. Por mais que durante o carnaval eu tenha conversado com a Francesca que estava preocupado com o novo coronavírus, a experiência de estar em uma quarentena — durante um desgoverno, diga-se de passagem — dá muita aflição pela nossa sociedade como um todo, principalmente. Acho que a falta de perspectiva de sair dessa por agora, a quantidade de mortos e infectados diária imensa que assola o povo, que está sofrendo em casa, sem renda, sem suporte do Estado, com essa necropolítica fascista, torna essa digestão ainda mais difícil.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

A Transe tinha planos de circular com nosso show Hora Dourada. A gente tava super empolgado, tinha direção musical do Henrique Paoli, que fez as bases meticulosamente e nós apresentando músicas novas, experimentando coisas, figurinos e tal. No meio da pandemia é difícil pensar em shows neste ano e muito difícil também ter sustentabilidade e manter nosso projeto funcionando. Nós temos feito planos de curtíssimo prazo e reformulando as ações do projeto para o próximo semestre.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Eu trabalho em casa, então parte do meu cotidiano não se alterou tanto. Mas os dias se tornaram muito parecidos, existe o ontem, o hoje e o amanhã, talvez. Isso tem me gerado muita angústia, ansiedade, dificuldade de sono. Tenho me medicado a respeito e estou mais equilibrado. A força vem da arte, de fazer coisas novas, que reflitam sobre nosso tempo. Estamos gravando músicas novas em casa, pensando em lançamentos e terminando novas composições com outros artistas que admiramos.

“Difícil tirar algo de positivo no meio ao caos político, à pandemia, às mortes e ao extermínio das classes menos favorecidas”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Acho que esse é o momento que a História responde a várias questões. O neoliberalismo é uma fraude dos detentores de capital, o negacionismo é uma doença que devemos combater com razão, ciência e humanismo. Como isso vai refletir na nossa sociedade eu não consigo prever.

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Francesca Pera (esq.) e Fernando Zorzal se apresentam como A Transe (Crédito: Victória Dessaune).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Difícil tirar algo de positivo no meio ao caos político, à pandemia, às mortes e ao extermínio das classes menos favorecidas que estamos vivendo. Eu espero que nossa sociedade possa abrir os olhos para fazer florescer o lado humano, que adquira consciência das desigualdades e dos males que estão fortemente presentes em nossa experiência coletiva, como o machismo, o racismo, as diversas formas de preconceito, a miséria e a fome.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Muda a forma como enxergo a fragilidade da vida. Ver pessoas que eu amo em grupo de risco no meio de uma pandemia global é algo que mexe com a gente.

“A arte precisa ter essa faceta de estar ligada às questões sociopolíticas do seu tempo. Acho que o contexto do que estamos vivendo tem que estar ali, mesmo que a nossa pegada seja mais poética”.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Tenho conseguido produzir sim, de madrugada enquanto minha filha dorme, eu e Francesca damos vida a novas composições e parcerias. É isso, temos pensado em lançar novos materiais — de casa, da maneira que é possível — no segundo semestre de 2020. Mas não diria que está sendo favorável, nas parcerias, por exemplo. Acho que seria interessante poder se encontrar, criar juntos. Nossa sorte é que as pessoas são muito talentosas, né? E fazem coisas incríveis à distância.

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Fernando Zorzal (esq.) e Francesca Pera (Crédito Nunah Alle e Karina Balves).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Acho que pode contribuir de diversas formas, como um afago em meio ao caos, como uma maneira de chamar para luta. Sabemos que a arte precisa ter essa faceta de estar ligada às questões sociopolíticas do seu tempo. Acho que o contexto do que estamos vivendo tem que estar ali, mesmo que a nossa pegada seja mais poética. Quando o artista tenta se afastar disso, eu, como público, me afasto dele [risos].

+ Leia também: Gabriela Terra: “Não dá pra glamourizar a produtividade em tempos de pandemia”.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Acho que o artista mais do que nunca tem que ir aonde o povo está, e ele está na internet, em casa. A gente tá buscando, através do virtual, uma relação mais humanizada com as pessoas. Não sei quais são minhas expectativas para esse novo capítulo, tá tudo tão imprevisível, né?

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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