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Gabriela Terra: “Não dá pra glamourizar a produtividade em tempos de pandemia.”

Conversamos com a produtora e líder da banda My Magical Glowing Lens sobre os efeitos dessa pandemia em sua vida e trabalho
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Natural de Colatina, Gabriela Terra é a vocalista, guitarrista, compositora, produtora e, para todos os efeitos, a própria My Magical Glowing Lens, uma banda pautada em elementos do rock, experimentações, psicodelia e bastante sensibilidade. Com um EP e o elogiado álbum Cosmos (2017) em mãos, ela acaba de passar uma temporada em Recife/PE, cidade que a encantou durante uma turnê que fez ainda em 2016 pelo Nordeste, e agora está de volta à sua cidade natal. Seu trabalho mais recente foi uma versão da inédita “Voa Canção”, apresentada ao vivo no projeto Girls In The Van.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Sandro Juliati (Mukeka di Rato, Volapuque), Leonardo Machado (Blackslug), Axânt, Gimu e Everton Radaell (Auri) no quarto episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparada para isso?

Gabriela Terra: Tem como digerir isso? Tá entalado na garganta ainda. A gente tinha todas as instruções para agir de modo a não morrer tanta gente, pois vimos como aconteceu em outros países, mas decidimos fazer o oposto. Não dá pra entender. A desvalorização da vida é absurda. Na minha cidade (Colatina/ES) teve uma manifestação: “luto pelas EMPRESAS que estão morrendo”. “Luto pelas PESSOAS que estão morrendo” não teve. Empresas valem mais do que vidas. “Amigos viraram números”, que nem diz aquela música do Don L. É surreal, parece o apocalipse, um pesadelo coletivo que não conseguimos acordar, sei lá. É de embrulhar o estômago. Muitas pessoas valorizam mais uma nota de 2 reais do que uma vida — e ainda se dizem cristãos, homens e mulheres de bem. A sensação é que essas pessoas da “gripezinha” já morreram por dentro.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Eu toco um estilo incógnito de música autoral… eu sempre vivi assim, sem dinheiro, sem poder fazer planejamento a longo prazo. Sem os shows eu tive que voltar a trabalhar como vendedora externa na Luthier Barcelos — que gosto muito — e comecei a planejar aulas de guitarra e produção que darei em breve. Eu sempre vivi muito no presente, então aprendi a me virar com o que tenho. Mas eu sou privilegiada, tenho casa e não me falta comida. Eu não tenho nada pra falar sobre isso, senão que esse presidente é um merda e que o governador do estado, senhor Casagrande, deveria enfrentá-lo. Algo drástico precisa ser feito e ele reabre os shoppings… E a fome, a desumanização, a miséria não existem só agora. Isso já acontece há muito tempo. Algo drástico tem de mudar faz décadas, séculos, e ninguém faz nada realmente eficiente pra mudar — e quando faz, é assassinada. Eu acho que a alternativa vai ser a gente montar sociedades alternativas, grupos com um novo modelo econômico, pois se depender dessa corja da “grande” política a gente tá f*d*d*… O lance é a micropolítica. Apoie suas amigas e amigos microempreendedores, compre da pessoa que fabrica, faça feira, compre orgânicos, pague bem seus funcionários, pare de juntar tanta grana, pare de usar sua mulher, pare de ser um otário.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Comecei a fazer yoga e meditar diariamente. Revi toda a minha vida, me sensibilizei com coisas que não me sensibiliza verdadeiramente, comecei a ver coisas que não via e a rever coisas que já via com mais clareza e de outro modo. Tudo mudou dentro de mim. Passei a me amar mais e entender que o que eu falava com 12 anos — em ser uma vendedora de flores e querer montar uma sociedade alternativa — foi a ideia mais lúcida que já tive até hoje.

“A sensação é que essas pessoas da ‘gripezinha’ já morreram por dentro”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

O congresso deveria aprovar a impressão de dinheiro e todo mundo que não tem um serviço extremamente necessário à vida deveria ficar em casa recebendo auxílio, com pena de multa se sair mais de uma vez por semana de casa. As pessoas estão loucas. Elas falam: “ah, mas eu não estou no grupo de risco”. Mas se você pega o vírus, mesmo que você não morra, você o transmite para alguém que pode estar no grupo de risco e essa pessoa pode vir a falecer. As pessoas estão se mostrando extremamente inconsequentes e egoístas. É assustador.

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Gabriela Terra em show do My Magical Glowing Lens (Crédito: Filipa Aurelio).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Sim. Comecei a valorizar mais as coisas simples, minha família, amigos, os rolês diários — e olha que eu já valorizava isso, mas passei a ver de outro modo. Passei a sentir a vida como algo realmente único e extraordinário. Já sentia assim, mas agora sinto de modo diferente. Mais intenso e verdadeiro. Os movimentos negro e indígena estão com mais voz e tem algumas outras coisas positivas também, mas muito pequenas perto do que está acontecendo de ruim. A taxa de feminicídio aumentou, a desvalorização da vida está escancarada em todos os cantos. E outra: a gente é inteligente. Somos capazes de perceber isso tudo sem passar por tanta coisa ruim. A gente já deveria estar aprendendo pelo amor e não pela dor. Seguimos ignorantes.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesma ou aprendeu nesse período de introspecção?

Tudo mudou e ao mesmo tempo nada mudou. É muita teoria e pouca prática. Penso demais e faço de menos. E olha que eu faço bastante coisa, mas ainda é pouco. É muita coisa que tem que mudar. É muito chão ainda pra gente se tornar pelo menos a metade daquilo que precisamos ser pra vivermos em equilíbrio com a Terra.

“A desvalorização da vida é absurda.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Sim, tenho produzido muito. Eu já tinha separado essa época pra produzir as demos do disco novo, então tudo se encaixou pra mim. Sou grata todos os dias por isso. Mas não dá pra glamourizar a produtividade em tempos de pandemia. A tristeza de saber que tem pessoas morrendo pelo Covid, outras nas ruas passando frio e fome, sendo mortas pela polícia, agredidas pessoalmente e na internet — como sempre teve — não me deixam em paz. Mas quero deixar claro que agredir pela internet não é expor homens que são violentos e abusadores. Amei os #exposed que tiveram. Tem que expor boy lixo mesmo. Quando falo sobre violência, falo das pessoas pretas, trans, homossexuais, gordas e indígenas que estão sendo agredidas física e virtualmente. É triste demais ver que a pessoa se esconde por detrás de um perfil virtual — muitas vezes anônimo ou fake — pra fazer mal a alguém que não fez mal a ninguém. Alguém que só escolheu não esconder o que é.

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Gabriela Terra durante a filmagem do clipe de “Space Woods” (Crédito: Francisco Xavier).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Estou preparando um material para contribuir. Ainda é segredo isso.

+ Leia também: Descubra qual é o álbum que a Gabriela Terra nos recomendou para ouvirmos durante essa quarentena.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Não faço ideia. Vai demorar a voltar, por causa da irresponsabilidade dos nossos líderes políticos e das pessoas egoístas que apoiam eles. Não acho que vai ter nenhum carnaval. Vai demorar a voltar — e quando voltar vai ser aos poucos. O risco de morte vai continuar alto, porque as pessoas se recusam a fazer o isolamento social e por isso teremos mais tempo de isolamento. Parece uma piada de mau gosto, mas é isso. Fica em casa quem puder, quem não puder, se cuida, por favor. Use máscara, álcool gel e tome banho quando chegar em casa. Se não for por você, que seja por poder transmitir o vírus pra alguém que tem medo de morrer. Se cuidem, por favor. Tem gente morrendo por causa de você não querer ficar em casa. Se você não dá valor a vida, respeite quem dá.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.
Foto de capa: Victória Dessaune | @vikkd.

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