Rafael Braz: “É um momento que expõe o quão imbecil e egoísta pode ser um lado da moeda.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Rafael Braz sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Rafael Braz (esq.) e Bernardo John (Crédito: Mariana Perim).
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Natural de Vitória, Rafael Braz pode até ser mais conhecido pelo jornalismo, mas eu não estou brincando quando digo que sua veia musical ainda é algo que merece atenção — especialmente pra quem gosta de suas palavras e opiniões. Dito isto, sua principal contribuição às artes sonoras está na figura da Auria, banda de hardcore à qual empresta suas letras e vozes desde sua formação em 2005. Com dois álbuns lançados, Entrelugar (2007) e Nicolas Cage (2015), o quinteto segue em composição de um novo registro e à espera de uma chance para apresentar sua nova formação.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Juliano Gauche, Ana Müller, Dan Abranches, Cainã Morellato e Hugo Ali no primeiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Em retrospectiva, você acredita que estava preparado para isso?

Rafael Braz: Pra ser sincero, eu só fui ter noção do que significaria isso quando vi a situação de Itália e Espanha. Os casos na China me pareciam um pouco distante, admito. Eu estou em isolamento social praticamente total (só saímos para supermercado) há quase três meses. Eu e minha esposa temos o privilégio de conseguir trabalhar de casa, mas acho que jamais estaríamos preparados pra isso. Lembro que quando começou o nosso isolamento eu pensei: “ah, em umas três semanas acaba”. Pensei também que seria tranquilo dar uma corrida na praia, uma volta de bike. E obviamente não imaginei que teríamos o pior “líder” mundial para conduzir um país no meio de uma pandemia. Hoje vejo os países europeus reabrindo e não consigo imaginar que façamos o mesmo, em uma situação de segurança real, nos próximos meses.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

É meio desesperador, né? Aqui em casa somos dois jornalistas, então nossa atividade principal está em pleno funcionamento. Mesmo assim, a vida dos veículos de comunicação está complicada pelos anunciantes, que cortaram total os anúncios e campanhas. Tivemos jornadas e salários reduzidos, mas não é fácil trabalhar menos, na verdade, é impossível. De home office, nós acordamos com mensagem no telefone ou com alguma informação que temos que trabalhar em cima. A disponibilidade acaba sendo 100% do tempo. É complicado, mas temos plena ciência de que estamos em uma situação muito mais confortável do que a maioria da população. Temos vários comerciantes na família, então vemos de perto a dificuldade pela qual eles estão passando e ajudamos no que nos é possível.

“Vivemos uma situação limítrofe pra caralho e acho que teremos muitas cicatrizes disso tudo.”

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação de um ponto de vista mental a esse período?

Não tem sido fácil, nem um pouco. O trabalho me mantém ocupado boa parte do tempo, mas pra mim rola uma coisa particular: ver filmes e séries, que é o que muitas pessoas têm feito como escape nesse período, pra mim é trabalho. Então, às vezes tenho a impressão de estar preso numa bolha de trabalho. Tive dias bons e dias muito ruins, mas adotei uma rotina de exercícios em casa pra tentar pelo menos ter uma quebra no dia. Também passamos a cozinhar muito mais por aqui, e isso tem ajudado bastante. No começo encontrei no videogame uma saída legal, mas percebi que tinha pouca concentração praquilo. Ainda tenho jogado, mas não mais como a principal válvula de escape. O mais difícil tem sido ficar longe dos nossos pais e sobrinhos, sem dúvida alguma, mas sinto também muita falta dos ensaios com a banda. Deixei de lado algumas leituras mais pesadas e tenho resgatado livros de Rubem Fonseca pra ler — a morte dele me fez lembrar o quanto gostava de sua obra. Achei que teria tempo pra trabalhar no livro que estou escrevendo, mas entra novamente a questão da concentração, do foco, que está faltando… Enfim, acho que minha força-motriz tem sido o trabalho e minha esposa, seguramos bastante a onda um do outro nos piores dias.

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Rafael Braz nos vocais da banda Auria (Crédito: Mariana Perim).

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Acho que é um momento que expõe o quão imbecil e egoísta pode ser um lado da moeda, porque eles vão ao extremo de colocar a própria saúde (e a dos outros) em risco e estão piorando uma situação gravíssima pra defender um governo fascista pra quem eles são apenas massa de manobra. O isolamento absoluto é complicado, porque atinge uma parte da população que está trabalhando por pura necessidade/obrigação patronal, mas se tivesse sido adotado há mais tempo, talvez estivéssemos agora em uma situação bem melhor, quiçá de reabertura. Vivemos uma situação limítrofe pra caralho e acho que teremos muitas cicatrizes disso tudo, como tem sido com tudo nos últimos anos. As eleições expuseram ódios e preconceitos em diversas pessoas e até hoje eu não consigo ter relações próximas com nenhuma delas. Acho que teremos algo parecido. Mas é algo que nunca vivemos antes, então é tudo pura especulação, sabe? Nos últimos dias vimos movimentos de oposição indo às ruas, prontos para o combate, e acho que isso voltará a ocorrer. Não é à toa que o presidente defende o armamento da população, ele precisa que seus defensores o defendam, que assustem outros movimentos. Assistimos ao colapso da democracia, o que me preocupa muito. Li bastante sobre o assunto nos últimos anos e o que o David Runciman diz em “Como a Democracia Chega ao Fim” é o que me preocupa, porque a gente ainda pensa em golpes como no passado, talvez devido ao caráter ditatorial e fascista do presidente, mas um novo golpe não deverá ter exércitos, tanques e generais retirando alguém do gabinete, ao invés disso, ele inventa uma brecha na lei, como foi a deposição da Dilma. Daí toda a comoção dos apoiadores do presidente com o tal Art. 142 da Constituição, que o Bolso defende que o dará poderes para intervir no Judiciário, interpretação completamente oposta à de juristas constitucionais. O plano dele é se tornar um ditador via Constituição, o que é um absurdo. Acho que divago, mas é que temo muito pelos rumos da sociedade política nesse contexto.

“Um colapso econômico gera uma crise ainda maior, mas colocar essa conta na preocupação com a saúde não é justo.”

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Cara, acho complicado. Admiro quem consiga, tenho uma amiga que está aproveitando para estudar, autoconhecimento e tal, mas não consigo. Quanto mais olho pra dentro de mim, acho que quero ficar menos tempo só comigo, sabe?  Acho que pode funcionar para algumas pessoas, sim, mas não pra mim. Como disse, tenho cozinhado mais, criado novas rotinas que talvez me sirvam de aprendizado depois, mas não sei se podemos dizer que é positivo. Num cenário mais macro, acho que estamos tentando entender, e talvez essa seja a grande luta, que a saúde pública vem antes da economia. Claro que um colapso econômico gera uma crise ainda maior, mas colocar essa conta na preocupação com a saúde não é justo; não é o isolamento que está causando isso, é o coronavírus. Acho que podemos rever alguns hábitos de consumo, alguns gastos excedentes, e não digo nem de grandes coisas não, mas tipo… eu realmente preciso de tanto tênis ou de tanta camisa? Se conseguirmos rever nossas práticas capitalistas, já acho um proveito gigante. Tenho tentado.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Eu descobri que não sou tão antissocial quanto sempre acreditei ser. Tenho sentido muita falta de amigos e familiares. Também tem sido importante entender que cada um tem sua luta e lida de maneira diferente com ela.

“Temos material pra um disco duplo.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Tem sido foda, porque o Auria estava num processo aquecido de composição pro novo disco. No isolamento, cada um reagiu de uma forma. O Murilo (Almeida, ex-Dead Fish) entrou sedento na banda e se tornou uma máquina de composições durante esse período. Sem brincadeira, temos material pra um disco duplo. Eu tenho escrito letras e criado melodias pra elas nas músicas que ele manda — a tecnologia permite muito isso. Então tem sido produtivo nesse aspecto, mas estarmos juntos como banda faz muita falta. O John tem produzido em casa também, mas material mais voltado pro seu trabalho solo, umas coisas mais intimistas e bem legais. É uma pena estarmos cada um em sua casa, pois talvez seja uma das fases mais criativas da banda em 15 anos. Como falei antes, tenho tentado trabalhar também no projeto de um livro sobre os 30 anos do Dead Fish. Tenho algo escrito, algumas entrevistas feitas, mas não tenho ficado satisfeito com o resultado de nada que escrevo dele. Acho que os novos capítulos não estão combinando com o que já foi escrito, não têm a mesma fluidez narrativa, e isso tem me incomodado muito. Vou tentar retomá-lo mais uma vez pra ver o que sai.

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Bernardo John (esq). Rafael Braz, Marcelo Buteri, Felipe Dumbo e Murilo Almeida (Crédito: Divulgação/Instagram)

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Cara, não sei. Espero que dê um ânimo a quem escolher ouvir o que produzimos, ou que talvez possam tirar algo positivo de alguma letra, mesmo que na maior parte do tempo eu seja um letrista um pouco pessimista. Sobre meu trabalho como jornalista, espero que o conteúdo de cinema, séries e música que eu escrevo sirva para dar uma quebra no noticiário tão pesado. Eu, como parte da imprensa, sei o quão pesado está sendo o noticiário para o público, mas acredite, pra quem trabalha nele está ainda pior.

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Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Acho que essa talvez seja a grande questão disso tudo, né? Enquanto não houver uma vacina, há um consenso de que conviveremos com a doença por algum tempo. Grandes eventos, de aglomeração, festivais… acho que só pra 2021, se tudo correr bem. Como esse é um mundo ao qual não pertenço tanto, acho que talvez consigamos retomar o mercado independente um pouco antes, shows pequenos, com menos público — não que os shows do Auria dessem muita gente. Eu, por exemplo, não assisti a praticamente nenhuma live. Acho que só vi a da Teresa Cristina e a do Emicida… Vi a do Cainã também, de quem gosto muito. Vi alguns trechos de outros artistas que eu curto. Acho legal, uma saída, um alento, mas estou acostumado a consumir esse tipo de música ao vivo. A live não me supre isso e eu acabo não tendo a paciência pra ficar vendo ali. Eu realmente não sei, cara. Acho que vamos ver as lives permanecerem após o pico passar, porque rendem uma grana aos artistas. As empresas estão aprendendo a capitalizar em cima delas também, então veremos produções cada vez maiores que talvez possam até substituir os DVDs Ao Vivo, sei lá. Imagina um sertanejo desses, a Marília Mendonça, pra nos atermos às pessoas legais, fazendo um puta show com transmissão ao vivo, ingresso e tudo mais? É um dos muitos possíveis cenários.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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