Gil Mello: “Certamente os planos deram errado.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Gil Mello (Mudo) sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Gil Mello (esq.) e Pedro Moscardi forma o duo Mudo (Crédito: Heitor Riguetti).
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Ex-integrante de grupos como Sol na Garganta do Futuro, Mango e My Magical Glowing Lens, Gil Mello é um cantor, compositor, multi-instrumentista e produtor que há pouco deu origem ao seu novo projeto musical, o Mudo. Construído em cima de camadas de experimentações e nuances atmosféricas, a banda — que também conta com Pedro Moscardi (TSM) e eventualmente o baterista Henrique Paoli (André Prando e Melanina MCs) — lançou seu EP de estreia ainda em 2018. Intitulado Não sei se soma ou ausência, o registro dispõe de três canções que revolvem em torno da temática da saudade, mas “não a saudade como um sentimento por algo que se perde ou está distante, mas a ausência enquanto manifestação dela — algo que se ganha e lhe é próprio”, conforme explica o próprio artista.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Gustavo Macacko, 6ok (Solveris), Vinicius Hoffmam (Zé Maholics), Lua MacLaine e Davi Cirino (Skydiving From Hell) no quinto episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Gil Mello: Certamente acredito que preparado ninguém estava, vide todos os planos traçados que tiveram que ser ou interrompidos ou simplesmente cancelados, pensando minimamente — além de ser impossível não sentir a prática genocida amplamente trabalhada pelo Governo Federal. Antes do Covid já vivíamos o cerceamento de direitos básicos, desmantelamento de inúmeros instrumentos de inclusão, massacre da população negra e periférica, destruição acelerada da Amazônia e áreas de preservação — a lista é interminável. Com certeza já tínhamos várias pandemias acontecendo por aqui, capitaneadas e divididas em Ministérios e Secretarias. Penso que antes mesmo de se começar a digerir a atual condição que vivemos, a má digestão será longa. É bem complicado quando o horizonte vem sendo ceifado das possibilidades. Não acho que tenha entendido essa situação de modo a exprimi-la em algumas palavras. Todo mundo está tentando achar uma boia pra se segurar durante o naufrágio que vivemos.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Olha, está sendo algo super difícil de realizar, apesar de todos os dias isso ser um fato incontestável que de uma forma ou de outra tem que se dar conta. Falando da minha condição especificamente, já vivo com pouco tem bastante tempo — o que acredito me fazer ter uma certa “calma”, apesar de ter dias que fico pendurado no teto de tanta ansiedade. Dentro do universo da música, ocupo (ou ocupei) muitas funções, de quem carrega e monta a quem contrata e produz. Fechar shows enquanto se lava o banheiro é normal. Onde fico maluco é pensar que das 357 coisas que fazia, uma ou outra, que sobram contando em uma mão, puderam ser continuadas de alguma forma. Sem dúvida, assim como eu, milhares de profissionais do meio estão vivendo de auxílio do Governo e doação de cesta básica de frentes organizadas por artistas, técnicos, produtores e selos. Tá bem complicado e dentro desse universo só penso nas galeras dos trabalhos, da graxa e da técnica, que estão em situações bem mais vulneráveis.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Logo no começo da quarentena pensei em finalizar algumas coisas que já vinha trabalhando, como o lançamento de uma sessão de singles do Mudo, e aproveitar pra me aprofundar em estudos de produção musical e mixagem. Ao passar dos dias, minha produtividade caiu vertiginosamente e consequentemente a concentração e o ímpeto da prática. Como sou “tripolar” [risos] e não consigo ficar parado, rapidamente precisei contornar essa situação. O que me propus foi começar a produzir uma música diferente todos os dias, aceitando que algumas renderiam e outras não, mas que tudo faz parte de um processo e que, para finalizar coisas e iniciar outras, me foi necessário ramificar e desdobrar os caminhos. Desse modo vou ocupando a cabeça, tentando transformar e ressignificar angústia, tristeza, ansiedade, saudade e solidão em um cenário mais suportável. Tem pintado coisas bem legais que vão ganhando corpo e sentido, sabendo que mesmo assim todos os dias tem que se tirar forças de algum lugar.

“Todo mundo está tentando achar uma boia pra se segurar durante o naufrágio que vivemos”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Não sei muito bem, mas certamente os planos deram errado. Num bate papo recente entre o Ailton Krenak e o Sidarta Ribeiro, algo que me atravessou, entre muitas coisas, foi uma fala do Ailton, onde ele diz que esse vírus não tem outro endereço que não o ser humano, e este não como existência e sim como espécie. Se uma profunda autocrítica não estiver sendo feita, o buraco vai parecer não ter fim.

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Gil Mello num dos primeiros shows do projeto Mudo (Crédito: Rafael Peruggia).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Acho bem complicado, ainda mais pensando a forma que o Governo Federal está tratando essa pandemia desde o começo. Se é possível, não sei. O que é certo é a urgência de profundas mudanças estruturais.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Se nada mudou, aí com certeza tem algo ainda mais errado.

“Acredito ser um período muito difícil para muita gente produzir e dar conta da existência e da saúde mental ao mesmo tempo”.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Quando esse isolamento, como você disse, é buscado pelo artista, as energias entram em consonância. Na condição que estamos, as coisas se deram de uma forma terrível, então acredito ser um período muito difícil para muita gente produzir e dar conta da existência e da saúde mental ao mesmo tempo. Isso sem falar que nenhuma conta entrou em quarentena e elas não param um dia. Como disse anteriormente, achei uma forma para continuar produzindo e não pirar, o que certamente está sendo minha salvação. Nesse meio tempo, o álbum que iria lançar como sendo o primeiro disco cheio do Mudo mudou de formato. Vou lançar vários singles separados, acompanhados de vídeos e animação, mas que perpassam ideias que são trabalhadas em todas as músicas. Além disso, estou começando a montar uma mixtape, com partes de vários beats, entre outras coisas, que postei no stories do Mudo no Instagram ao longo dos últimos dois anos — e não vai se chamar mixtape [risos]. Também tô desenvolvendo o roteiro de um programa pra se conversar enquanto se fuma (qualquer coisa). Inclusive, devido a esse período de isolamento, é possível que eu mesmo me entreviste fumando.

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Gil Mello, do duo experimental Mudo (Crédito: Hannah Carvalho).

+ Leia também: Veja qual foi o álbum que o Gil Mello nos recomendou para ouvirmos durante a quarentena.

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

A música pra mim é conexão, talvez por isso minhas letras tracem um caminho sobre transitoriedade, fragilidades e ressignificação de distâncias. Espero sempre poder contribuir para confortar alguma existência. Já a parte técnica das minhas atividades, estou estudando também para sistematizá-las e poder compartilhar o que aprendi ao longo dos últimos 10 anos de uma forma mais objetiva. Inclusive, a quantidade de minicurso de áudio (gravação, mix etc) que dei pelo WhatsApp nos últimos meses [risos] estão me ajudando a visualizar melhor o que posso compartilhar. Através do Edital Emergencial da SECULT [Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo], vou realizar uma live onde vou unir o modo de produção musical que desenvolvo com o Mudo com as aplicações técnicas utilizadas para tal, explicitando e trocando ideias sobre as particularidades dos processos.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Apesar de acompanhar alguns pensamentos sobre o novo modo de dispor toda a cadeia da arte e do entretenimento, aos meus olhos ainda está muito longe de que modo toda essa engrenagem vai novamente se movimentar. A distância abismal entre uma artista de grande porte e um artista de pequeno porte independente não podem ser equiparadas, ainda mais agora com todas as restrições que carecem de adaptação — pensando também em festivais, casas de shows. Está difícil de vislumbrar uma saída para tudo isso e, se tratando de Brasil, a gente mal consegue acompanhar todas as atrocidades diárias — o que embaça mais ainda o horizonte. Artista tem que ser artista só por querer ser artista, então de alguma forma sabemos pensar e agir de modo criativo. O trabalho minimamente é longo e árduo.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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