Luíza Boê: “Esse contexto favorece a reflexão que há tanto é ignorada.”

Leia na íntegra o papo que tive com a Luíza Boê sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Luíza Boê (Crédito: Yulli Nakamura).
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Natural de Minas Gerais, Luíza Boê é uma cantora e compositora criada no Espírito Santo. Em 2013 foi radicada no Rio de Janeiro, depois passou um tempo na Europa e agora partiu para São Paulo. Sua carreira solo foi alavancada pelo lançamento de um álbum homônimo (2018) rapidamente seguido pelo EP Terramar (2019). Seu registro mais recente foi uma versão acústica da música “Eu Digo Sim”, disponibilizada durante essa quarentena.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Fabio Mozine (Mukeka di Rato), Gabriela Brown, Fepaschoal, Thiago Stein (DOZZ) e Edson Sagaz (Suspeitos na Mira) no segundo episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparada para isso?

Luíza Boê: Pessoalmente me senti preparada, pois estou vivendo momentos de grandes transformações nesse caminho do dizer SIM pra vida — retorno de Saturno, mudança pra São Paulo/SP (cidade onde eu nunca tinha pensado em morar), trabalhos espirituais profundos e outras grandes mudanças internas. Então, sinto que além de todos os meus privilégios, criei uma musculatura interna para atravessar essa grande transição planetária.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Lamentei os shows cancelados e alguns planos pra esse ano. Mas eu busco não me desesperar e entender quais outras possibilidades eu posso explorar. Isso tem ampliado meu olhar sobre a vida e sobre mim mesma. Falei sobre isso há pouco tempo na minha websérie de autoconhecimento no IGTV, “Água Viva”. Esse momento nos obriga a abrir mão do controle que achávamos que tínhamos sobre a nossa vida para buscar outras possibilidades de realizar nossos trabalhos, descobrir novos talentos e formas de ganhar dinheiro, de se relacionar. Estamos sendo chacoalhados pra ver se entendemos que a forma como a engrenagem capitalista gira não é sustentável.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Eu tenho várias ferramentas que me ajudam a manter o eixo, e faço uso delas todos os dias: meditar, orar, fazer afirmações positivas, escrever diário, manter a casa limpa e organizada, fazer a cama, me alimentar de forma saudável, manter o corpo em movimento e, claro, a música. Acredito que o bem-estar, a serenidade que tanto buscamos, vem de um trabalho diário e constante. Não é que ficamos insensíveis às coisas, mas a diferença entre os ápices de adrenalina daqueles momentos maravilhosos e aquelas grandes quedas de autoestima fica muito mais sutil.

“Ficar em casa é um privilégio que tem classe social e cor de pele.”

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Acho o isolamento extremamente necessário, tendo em vista o grande número de mortes causadas pelo COVID-19. É um vírus altamente contagioso e letal, o que sobrecarrega o sistema de saúde e o serviço funerário. Infelizmente, ficar em casa é um privilégio que tem classe social e cor de pele, porque nas periferias não existe quarentena. Essas pessoas continuam trabalhando, arriscando a própria vida e de suas famílias em transportes lotados para que os serviços básicos continuem funcionando. Estamos vendo quem realmente faz a economia girar. Esses trabalhadores e trabalhadoras tão invisibilizados e desvalorizados são responsáveis pelo bem-estar de grande parte da população. Para além disso, a postura do Bolsonaro frente a esse caos é desumana, vergonhosa e só agrava a situação. É o Brazil escancarado. O Brazil que sempre esteve matando o Brasil, como bem escreveu Aldir Blanc.

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Luíza Boê (Crédito: Yulli Nakamura).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Acredito que existem aprendizados a nível individual e aprendizados a nível coletivo. A nível individual, as pessoas estão tendo que encontrar algum prazer em estar na própria companhia, encontrar outras formas de se relacionar que não desgaste com a convivência intensa. Não é por acaso que o vírus da pandemia mundial seja um vírus no ar, um vírus respiratório. O ar representa a comunicação, a expressão, e estamos sendo obrigados, enquanto indivíduos e enquanto sociedade, a enxergar o quão adoecida está nossa forma de se comunicar, o quão intoxicada está a nossa expressão. Ao mesmo tempo, as manifestações aqui, nos EUA e em diversos países do mundo pelas vidas negras e todas as ocupações que temos visto de ativistas negras em perfis de famosos brancos para pautar de uma vez o tema do racismo no Brasil (como Linn da Quebrada no IG da Tatá Werneck e Djamila Ribeiro no perfil do Paulo Gustavo) são ações que tomaram proporções inéditas e esse contexto de pandemia favorece a reflexão que há tanto tempo é ignorada.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesma ou aprendeu nesse período de introspecção?

Descobri que consigo criar uma rotina pra mim, mas também descobri que só consigo fazer o que me proponho a fazer se colocar alarme para absolutamente tudo. Com isso descobri que muitas vezes o problema não é a falta de tempo, mas sim a procrastinação.  Confirmei a importância real das minhas ferramentas de autoconhecimento para que eu me mantenha presente e em equilíbrio. Percebi que ou eu sou gentil e amorosa comigo mesma, ou ficar só na minha própria companhia se torna um inferno. Confirmei o quanto eu gosto de ficar em casa. Descobri que minha criatividade não precisa se limitar a um só tipo de expressão artística e que é muito importante brincar com a minha criança interior. Percebi que quero muito adotar um cachorro.

“Meu propósito é conectar com o coração das pessoas, levar consciência e conforto por meio do meu trabalho.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Muito! Não é possível criar sem algum relaxamento, sem ter tempo livre. Estou compondo muitas músicas, mas também tenho pintado muita aquarela, toda terça público a websérie “Água Viva” no meu IGTV, voltei a estudar teclado, que foi meu primeiro instrumento quando eu tinha 8 anos, faço aula online de expressão corporal, faço terapia, estou lendo, participo de um grupo online de leitura do livro “O Caminho do Artista”, que é um livro maravilhoso para desbloqueios criativos. Criatividade e espiritualidade pra mim são um mesmo caminho. Acredito que quanto mais me trabalho enquanto ser humano, melhores serão minhas criações.

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Meu trabalho é atravessado pela dimensão do autoconhecimento e pela dimensão da espiritualidade, naturalmente. Então sinto que esse cenário provocado pela quarentena, que é mais propício à reflexão, acaba aumentando a conexão das pessoas com as minhas músicas — lancei, durante a quarentena, uma música chamada “Eu Digo Sim”, que fala sobre a coragem de dizer SIM pra vida, pra si mesme. E recebo as mensagens mais lindas e as confissões mais profundas por causa dessa música. “Mãe” tem sido usada por psicólogos e terapeutas de várias partes do país em seus trabalhos. A websérie “Água Viva” também cria muita conexão. Meu propósito é conectar com o coração das pessoas, levar consciência e conforto por meio do meu trabalho. E sou muito grata por isso estar acontecendo.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Acredito que será um grande desafio para nós da cultura reinventarmos um jeito de consumir música, teatro, cinema, entretenimento e estar junto sem que isso seja um grande risco para a saúde das pessoas. Ao mesmo tempo, essas condições limitantes nos impulsionam a criar novas formas de monetizar os serviços e produtos culturais. Espero que isso aconteça de forma que beneficie os artistas novos e independentes, e não somente os que já estão consagrados. Torço para que haja cada vez mais plataformas, editais e projetos que incentivem a cooperação, ao invés da competição. De tudo, tenho apenas uma certeza: arte não vai faltar!

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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