Manfredo: “O grande vilão talvez não seja o vírus, mas nossa própria ignorância.”

Leia na íntegra o papo que tive com Manfredo sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Manfredo ao vivo (Crédito: Ademir Ribeiro).
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Cantor e compositor há quase duas décadas, Manfredo foi o líder da Manfredines, banda que chegou a dividir palco com renomados artistas nacionais como Paralamas do Sucesso, Capital Inicial, Los Hermanos, Jorge Ben e mais. Em carreira solo há cerca de 6 anos, em 2017 lançou seu single de estreia, “Sweet River”, cujo clipe retratou os efeitos do rompimento da barragem da Samarco e a posterior contaminação do Rio Doce pelo despejo da lama de rejeito. Atualmente, além de estar envolvido em projetos políticos voltados à Cultura, Manfredo planeja em breve fazer o lançamento de mais um single, “O Vórtice”.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e saiba quais são suas reflexões sobre esses últimos meses de pandemia. Aproveite também para ler as entrevistas com outros artistas capixabas que participaram da série Quarentalks clicando aqui.

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Manfredo (Crédito: Ademir Ribeiro).

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Manfredo: De maneiro alguma. Me lembro de sair pra almoçar com minha mãe e um primo no mesmo dia em que veio a público a confirmação da primeira morte no Brasil e isso foi no dia 16 Março, a última vez que saí socialmente. Me recordo da sensação visível de preocupação e dúvida que pairava pela cidade. Lembro de neste dia ter usado o serviço de app de transporte e do quanto já foi diferente — era como se todos desconfiassem uns dos outros. Percorremos o trajeto com vidros abertos e outra coisa que eu jamais vou esquecer foi o relato do motorista sobre como ele e sua família já estavam estocando alimentos e “protegidos” tendo em casa duas armas de fogo, que, segundo ele, provavelmente seriam necessárias pro que estava por vir. Foi o primeiro choque dessa situação e o início dessa nova realidade pra mim.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Preciso, antes de mais nada, enaltecer o quão grato sou por ter o suporte familiar que tenho. Muito antes de sermos vítimas de uma epidemia em escala global, uma pandemia que neste momento já findou mais de 95 mil vidas apenas no Brasil, a arte e a cultura já eram negligenciadas e marginalizadas por aqui. Em 17 anos de carreira, eu sempre tive muito claro que ser arista no Brasil é entender nosso papel nesse cenário ao mesmo tempo que é entender a imensurável diferença entre fama e sucesso. Diante disso, sinto gratidão por ter o privilégio de ter uma família que me auxilia substancialmente nesse momento, e em especial, minha companheira e esposa, Fabienne Juffo, que por várias vezes segurou as pontas das finanças quando eu não pude, já que períodos de escassez de trabalhos remunerados sempre foram parte habitual na vida de um artista independente. É claro que nunca vivemos uma crise como essa, e nem de longe por um período tão extenso como esse, mas, graças a ela, pude me dar ao luxo de seguir o isolamento social em casa, de onde sigo produzindo e trabalhando, ainda que sem qualquer tipo de retorno financeiro, mas de alguma forma com mais ímpeto que antes, pois acredito que as pessoas precisam de arte e de música — agora mais do que nunca.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Da minha perspectiva, sempre achei que a pessoa artista fosse mais vulnerável a essas condições, por acreditar que, enquanto artistas, sofremos de um sentir mais sensível que pessoas de outros fazeres. E isso em parte vinha da minha própria experiência de vida, já que apenas de ser conhecido por familiares e amigos como uma pessoa brincalhona, nunca escondi o quão melancólico sou e isso é facilmente conferido pelas minhas canções. Costumo dizer que, se você quer me conhecer, é só ouvir as canções que escrevo — estou todo ali. É certo que acontecimentos traumáticos que podem acontecer a qualquer um trazem uma outra perspectiva num âmbito mais patológico, e com isso sempre busquei ter cuidado pra não tecer autodiagnósticos e nem acabar influenciando alguém ao mesmo. Apesar de só ter feito terapia uma vez, sempre respeitei este método de tratamento e a importância de se cuidar da mente como buscamos cuidar do corpo. De certo que este isolamento forçado é um desafio difícil, mas novamente me sinto afortunado, pois no trabalho consigo externar parte dos meus dilemas e ao mesmo tempo criar algo que pode de repente ajudar outra pessoa que esteja passando por uma dificuldade parecida. Na real, desde que eu busquei me entender como artista solo, após um período de 10 anos com uma banda, descobri que meu propósito na música, mais até que entretê-las é fazer com que [as pessoas] se sintam bem com elas mesmas.

“Acredito que o mundo todo precisa ouvir o que essa pandemia veio dizer”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Um importante momento de reflexão. Ganhamos de maneira muito triste, e ao custo das vidas de centenas de milhares de pessoas, a chance de nos reavaliarmos como indivíduos e comunidade. Acredito que é mais que providencial que façamos a transição ao invés de esperar por uma “normalidade” que nunca existiu pra todos. Como humanidade, há muito tempo clamamos a todas as ideias de divindades, ou qualquer tipo de força maior, por uma reposta pra nossos dilemas, incertezas e confusões, e acredito que fomos ouvidos, mas não estávamos prontos pra reposta. Acredito que o mundo todo precisa ouvir o que essa pandemia veio dizer.

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Manfredo em formato acústico (Crédito: Reprodução/YouTube).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Este momento, por mais triste e difícil que seja, é histórico. Histórico, porque colocou toda a humanidade prestando atenção na mesma coisa. Ainda que passemos por este momento de maneiras distintas, dado à tamanha desigualdade que temos no mundo, seria um desperdício tremendo se não aproveitássemos esse choque de realidade pra evoluir como povo e como sociedade. Me espanta que tudo isso tenha vindo de algo “natural” e não de uma terceira Guerra Mundial. Apesar de ser uma guerra possivelmente pela sobrevivência da nossa espécie, não paro de pensar que podemos estar diante de uma escolha que vai determinar o futuro de todos e que o grande vilão talvez não seja o vírus, mas nossa própria ignorância.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

A questão do autoconhecimento deve ser um ponto comum pra maioria que, como eu, pode se manter em isolamento e que de fato seguiu em isolamento. Num momento como esse, eu me esforcei e venho me esforçando pra exercer mais a empatia, principalmente pelos grupos de pessoas que vêm sofrendo mais com toda essa situação. Mas sou humano e não deixo de me pegar divagando sobre questões diversas, das mais rasas às mais profundas — como: “qual será o desfecho disso tudo?” e “será que eu ainda devo continuar insistindo na música?”. Essas e outras ideias surgem vez ou outra, mas eu dou logo um jeito de não as deixar ocupar espaço demais. Procuro não me cobrar tanto profissionalmente agora, lembrando que a vida não é um “100 metros rasos” e sim uma “maratona”. Ainda que exista competitividade, o importante é completarmos o trajeto bem, de preferência ajudando quem pudermos no caminho.

“Eu espero que a indústria se torne mais humana e justa, e que o artista, em especial os artistas compositores, sejam plenamente reconhecidos”.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Com o tempo e as reflexões, acabei criando demandas até maiores que as que costumava ter antes, mas tenho procurado me manter bem. Pelo que já percebi, meu fluxo de composição segue o mesmo comportamento de antes, sendo que desde que o isolamento começou eu escrevi quatro canções novas, para as quais produzi vídeos e que já estão disponíveis no meu canal no YouTube e nas redes socais. Também venho trabalhando no lançamento de um single novo — “O Vórtice”, gravado em estúdio no final de 2019 e que, por conta da pandemia, acabou atrasando, [embora] muito em breve estará em todas as plataformas de streaming. [Também] estou totalmente inserido nas questões de construção de políticas públicas culturais e emergenciais em diversas frentes ativistas, como o Comitê Independente de Arte e Cultura/ES e o Conselho Municipal de Políticas Culturais de Vila Velha (CMPC), onde estou como Conselheiro titular na cadeira de Música que, junto a outras frentes, acompanham todo o processo em torno da criação, regulamentação e implantação do “Projeto de Lei 1075/2020 – Lei de Emergência Cultural – Aldir Blanc”, proposta pela Deputada Benedita da Silva (PT-RJ) e que visa liberar um recurso que já pertencia à pasta da cultura em assistência à toda classe profissional da Cultura no Brasil. Uma mobilização histórica pra Cultura [e que no dia 29 de junho foi instituída como Lei n° 14.017, embora vetada parcialmente pela MSC 364/20]. E não posso deixar de mencionar espaços como a Rádio Cidade e a Rádio Universitária, que sempre tocam minhas canções e me ajudam muito me acionando pra entrevistas e participações, como aconteceu com os programas “Santo de Casa” e “Sorvetinho” — e, é claro, o Inferno Santo, de quem eu gosto muito e que renova sua existência com um novo ciclo de artigos e entrevistas. A cena musical do Espírito Santo carece desses espaços de crítica e agradece sua presença.

Manfredo - By Ademir Ribeiro - Edição - Dejair Paulo
Manfredo (Crédito: Ademir Ribeiro).

+ Leia também: “Escute esse disco”, por Manfredo.

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Longe de mim ter a pretensão de ver minhas músicas sendo um bálsamo pra mais alguém além de mim, sabe? Mas espero de todo coração que se alguma canção minha chegar em alguém que não está lidando muito bem com isso tudo, como eu, que ela possa se sentir acolhida e que de alguma forma sinta que não está sozinha. Não está.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Essa é uma dúvida que me coloca no mesmo lugar que o Coldplay, ou a Beyoncé, né? Qual será o futuro da música pós-pandemia? De verdade, eu espero que a indústria se torne mais humana e justa, e que o artista, em especial os artistas compositores, sejam plenamente reconhecidos.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.





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