Sandro Juliati: “O neoliberalismo não se justifica mais sob nenhuma hipótese.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Sandro Juliati (Mukeka di Rato, Volapuque) sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Sandro Juliati com o Mukeka di Rato (Crédito: Marina Melchers/Divulgação).
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Sandro Juliati é um dos grandes expoentes do meio underground capixaba. Vocalista do Mukeka di Rato, ele ganhou notoriedade no cenário nacional quando o grupo lançou seu primeiro disco, o icônico Pasqualin na Terra do Xupa-Kabra (1997). Agora, 23 anos e vários álbuns mais tarde, Juliati tem se dedicado a uma banda de rock experimental que montou no final da primeira década do novo milênio, a Volapuque — que acaba de fazer sua estreia com um álbum homônimo.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens), Leonardo Machado (Blackslug), Axânt, Gimu e Everton Radaell (Auri) no quarto episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Sandro Juliati: Olha, isso pra mim não era de se cogitar mesmo. Sempre tive mais medo de tragédias à nível global, tipo tsunami, guerra nuclear, falta de água potável, poluição extrema etc. O que também não quer dizer que me preparava para isso [risos]. Eu não consigo deixar de ficar perplexo diante do que estamos passando. Dado o choque inicial, que permanece, fico ainda mais “perplecto” com grupos fanáticos que insistem em negar as autoridades sanitárias e ovacionar políticos desvairados e fascistas.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Não é nada fácil, por isso acho que temos de ligar um estado de alerta permanente: cuidados minuciosos na higiene, reinvenção de nosso cotidiano e geração de renda, exigência de políticas públicas de qualidade não só na saúde, mas na educação, cultura, direitos humanos, segurança, infraestrutura etc. Adiar e extinguir agenda é um troço traumático e pra gente que projeta ações coletivas que envolvem aglomeração, lascou tudo. Acho que ainda estamos todos assimilando isso, e talvez a ficha não tenha caído totalmente. Pra quem tem teto, segurança alimentar, água encanada, acesso à tecnologia e inclusão digital, eu acredito que é menos doloroso, mas também deixa suas marcas profundas.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Assim que entrou a pandemia, meu trabalho foi suspenso. Agora que houve uma retomada, após adequarmos protocolos de saúde aos trabalhadores e o público que atendemos — educação em espaços da assistência social. Antes de eu quebrar minha quarentena, consegui organizar muita coisa procrastinada em casa, desenvolver projetos online, conviver mais com minha pequena filha, valorizar mais as amizades e amores — mesmo distantes. Tive pouco apetite para leitura e nenhum pra me exercitar — não sei por quê. Por outro lado, acho que nesse período assisti mais documentário de música do que vi em minha vida inteira. É isso: Amor, amizade e cultura crítica têm sido minha força-motriz pra continuar.

“É o suor e as mãos trabalhadoras que constroem a riqueza acumulada”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Creio que significa saber lidar com o inesperado e tentar reinventar-se nisso. Nós como sociedade estamos tendo a oportunidade de reconhecer a importância de se ter um sistema público forte e democrático pra aguentar uma peteca dessa aí. Mais do que as baixas diretas na saúde, o impacto socioeconômico com o aumento de desemprego em massa e pobreza causadas pela pandemia aumentará o quadro de desigualdade que já era crítico, e teremos mais óbitos por isso. Existem escalas de impacto diferentes de acordo com a classe, etnia, gênero e território onde as pessoas vivem. Não somos todos atingidos da mesma forma. Na pandemia isso vai ficar gradualmente mais nítido. O neoliberalismo não se justifica mais sob nenhuma hipótese nesse quadro, mas ele ainda é um estandarte em riste nos espaços de poder e decisão. Creio que esse momento pode significar uma possibilidade de balanço, análise sincera de coisas apodrecidas que vivem entre nós e que matam mais que o corona, como a necropolítica aplicada pelos rentistas.

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Sandro Juliati com o Mukeka di Rato (Crédito: Reprodução/YouTube).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Acredito que sim. Entender que a ciência e o jornalismo pautados na ética podem ser ferramentas à serviço da vida humana, e não somente serem apropriados para o privilégio de pequenos grupos e lobbies econômicos — como de praxe se configuraram grandes conglomerados empresariais desses setores até aqui. Se esse vetor ético vingar, e se não for uma jogada oportunista dos liberais ao keynesianismo, talvez tenhamos a chance de desenhar um mundo menos injusto, mais solidário e sensível às questões sociais de nosso dia a dia.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

A dimensão bioquímica da nossa existência ficou muito mais gritante pra mim. O contato físico e a aglomeração social ficaram mais evidentes como engrenagens da vida. Tá nítido também — só não vê quem não quer ou ganha com isso — que é o suor e as mãos trabalhadoras que constroem a riqueza acumulada. Descobri que músicas como “O mundo é um moinho” (Cartola) e “Rumo dos Ventos” (Paulinho da Viola) são mais que hinos, são guias e luzes pra atravessar esse turbilhão. Algo mudou? Sim! Tudo! Só não vou citar aquela do Lulu que aí já é forçar a barra.

“Condenar a idiocracia, defender a diversidade, solidariedade e políticas públicas com protocolos de consulta sérios será sempre minha missão”.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Somente a escrita que me surge na maior parte das vezes, isoladamente. Colocar ela em bases musicais sempre foi pra mim um trabalho coletivo. Agora tenho explorado bastantes as TIC´s (tecnologias da informação e comunicação) e procurado desenvolver projetos online com minhas patotas. No Volapuque temos lançado teasers toda semana divulgando o álbum de estúdio que gravamos ano passado em Vitória e o Mukeka Di Rato tem relançado edições anteriores em vinil. Tenho dado assessoria e consultoria de produção cultural à galera do circo e também do rap na minha região e minha antiga banda Pönvéi já soltou uma live/tributo e lançaremos outras em breve. No segundo semestre vou lançar a Rádio In-Vazão, uma webrádio com músicas e entrevistas e talvez até o fim do ano espero botar na praça um projeto meu de música eletrônica. Tudo online.

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Sandro Juliati (Crédito: Divulgação).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Os trabalhos que produzi e produzirei neste período pretendem sempre considerar os protocolos de saúde e as investigações jornalísticas de profundidade — que não se curvam aos fanatismoSS da esquina e fundamentalismo$ no parlamento. Condenar a idiocracia, defender a diversidade, solidariedade e políticas públicas com protocolos de consulta sérios será sempre minha missão, seja na cultura, educação, pesquisa, assistência social e ações diretas. Se não perder essa verve crítica no caminho, acredito que poderei contribuir para pessoas não sucumbirem às aberrações em voga.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Eu sinceramente não sei. Creio que teremos que nos basear num diálogo constante e profundo com as orientações e medidas sanitárias para encontros presenciais com aglomeração no período pós-pandemia. Acredito que teremos um aumento das atividades virtuais e imagino que não serão possíveis aglomerações em lugares fechados tão cedo. Isso muda muita coisa e é um aprendizado que podemos ter/tecer a partir da experiência do que foram as pandemias anteriores — pra não repetirmos erros e medidas sem fundamento científico. Eu acho bacana algumas análises atuais, que apontam que não haverá uma volta à “normalidade” que regia o nosso mundo nos moldes anteriores — Slavoj Zizek e David Harvey pra mim são certeiros ao tratar desse tema.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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