Cainã Morellato: “Me sinto ínfimo em relação aos verdadeiros problemas.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Cainã Morellato sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Cainã Morellato (Crédito: Autorretrato).
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Natural de Linhares, Cainã Morellato começou sua carreira na música direto num formato solo, chegando inclusive a lançar um disco, Morador do Mato (2015). Hoje ele é o frontman do grupo Cainã e a Vizinhança do Espelho, que recentemente fez sua estreia com o álbum O Último Disco do Ano (2018).

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Juliano Gauche, Ana Müller, Dan Abranches, Rafael Braz e Hugo Ali no primeiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Cainã Morellato: Não, eu não achava que eu tava preparado, cara. E eu acho que ainda não deu pra digerir tudo o que significa a quarentena de fato, porque a gente não passou por um lockdown, por exemplo — e provavelmente vamos passar. Então, em retrospectiva, eu acho que era algo muito abstrato, mesmo sabendo por antecedência. Era diferente a gente ver os outros países passando pelas coisas e tal. Era diferente de sentir na pele, né? De você estar realmente ali recluso, dentro de casa, convivendo com o seu mundo o tempo inteiro, em excesso — em relação ao que a gente normalmente convive. Então, acho que eu ainda não digeri completamente, porque ainda estamos em processo. Mas, olhando pra trás, certamente é um ciclo de muito aprendizado.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Eu tenho buscado solução. Solução e buscado ser criativo nesse mundo. Acho que, se é que existe uma parte boa de tudo o que tá acontecendo é o fato da gente poder ter mais tempo pra se dedicar a coisas que estavam paradas. Rever os planos, rever as prioridades. A gente começou a tentar arrecadar de alguma forma pra banda, apesar de ser ínfimo em relação ao que a gente costumava fazer — não pode fazer shows mais. Mas a gente tem feito lives, tem feito parcerias com alguns artistas, tem produzido mais coisas nas redes sociais e nos nossos canais. [Temos] produzido mais coisas juntos, mesmo à distância. No sentido da grana, ainda não temos uma solução decente, mas, em termos de produtividade, a gente tem conseguido fazer coisas legais.

 “Significa um período necessário de encarar tudo”.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Eu tive muitos problemas no início — na realidade mais pro meio — de ansiedade, de pânico, de … enfim, problemas pessoais. Mas realmente foram coisas que precisavam ser resolvidas, sabe? Acho que a amplificada que essa situação deu nisso — acho que até o convívio extremo consigo mesmo — te obriga a olhar para lugares em que você geralmente não olharia ou que deixaria passar ou que procrastinaria uma decisão. Então a minha adaptação tem sido encarar isso e me tornar uma pessoa melhor. Como a minha música anda muito junto com a minha experiência de vida, acho que essas duas coisas também andam muito juntas. Então a minha força-motriz tem sido a arte e a criatividade.

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Cainã (ao centro) e a Vizinhança do Espelho (Crédito: Divulgação).

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Eu acho que significa uma consequência das nossas atitudes, mas também significa um período necessário de encarar tudo. De se encarar como ser humano, de se encarar como sociedade, de se encarar como comunidade. Então, eu acho que tá mostrando bastante onde é que estão os focos, né? Onde é que está “o” foco, aliás. Onde é que está a desvalorização de certas coisas. As pessoas que discriminavam a ciência ou que descredibilizavam a ciência, descredibilizavam a arte ou as produções artísticas, agora tão tendo que ficar em casa e ouvir música e assistir a filmes e séries, que são produzidos por artistas e pessoas da cultura. A sociedade está dependendo da ciência pra poder lidar com a pandemia, no sentido de que estamos sim, pesquisando e esperando uma vacina — ou não, né? Ou o governo não tá [risos]. Mas enfim, o nosso papel como seres humanos tá sendo buscar uma alternativa através da ciência, então acho que é isso… Significa para nós, como sociedade, encarar o que nós temos e avaliar se a gente tá dando o nosso melhor e sendo a melhor versão de uma sociedade.

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Sim, apesar de ser difícil dizer isso quando a gente vê todo dia um recorde de novas mortes. Pensar que a gente já se acostumou com um número tão grande de brasileiros e brasileiras morrendo, simplesmente. Pessoas com sonhos, com trajetórias, com histórias, com famílias, simplesmente perdendo a vida por descaso de um governo sádico que na maior pandemia da história recente não tem um Ministro da Saúde, cara. Como é que pode isso, né? Então, respeitando essas pessoas, mas ainda reconhecendo o momento que a gente tá vivendo, eu tenho uma frase da minha mãe que eu gosto muito que diz: “O mau sempre está a serviço do bem”. Então, o que que a gente pode tirar dessas reflexões e desse convívio extremo com a gente mesmo? Será que a gente tá sendo parceiro o suficiente? Será que a gente tá sendo empático o suficiente? Acho que de positivo a gente pode tirar o que tá se evidenciando tão claramente, como as prioridades erradas esse tempo todo. Cuidar do nosso ambiente, do nosso planeta, das pessoas, da desigualdade social, do racismo, do combate ao fascismo e à opressão. Acho que é possível tirar muito autoconhecimento e muita maturidade se a gente for responsável.

“A arte, como expressão e como ferramenta de conexão, tem esse poder de contribuição nesse momento.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Sim, cara. Muito. Principalmente na vida do artista independente, como é o meu caso. Eu já preciso fazer outras coisas pra ganhar dinheiro naturalmente. Então, num momento em que a banda também é cortada como fonte de renda, eu preciso me virar. Mas também ganhei mais tempo para poder estar em casa e fazer essas coisas, né? Então o silencio tem sido muito bom mesmo nesse sentido. Realmente esse isolamento — pegando só esse lado, né? — é muito favorável, porque a gente tem mais tempo pras produções. Pode passar mais tempo imerso no processo produtivo, porque no meu processo criativo é muito importante poder ter calma pra trabalhar com as coisas, respirando de forma orgânica. E eu tenho me ocupado dividindo o meu tempo: metade nas produções e metade nos trabalhos que eu faço por fora: de vídeo, de foto, de edição, filmagem — na verdade filmagem não, tão caindo todos os trabalhos na verdade. Mas design gráfico e edição de vídeo, principalmente, é o que eu tenho feito.

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Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Pra ser muito sincero, diante dos protestos que estão acontecendo, diante das manifestações antirracistas, antifascistas e as pessoas dando voz a essas coisas, eu confesso que eu sinto que às vezes falar sobre e divulgar o nosso trabalho e querer que ele se propague num momento desses é até meio soberbo, sabe? Meio estranho. Eu me sinto ínfimo em relação aos verdadeiros problemas. Por outro lado, eu acredito que a arte, como expressão e como ferramenta de conexão, tem esse poder de contribuição nesse momento e também no pós, sabe? Então eu gosto muito da inspiração e da efervescência que isso causa nas pessoas. As pessoas se tornam mais aptas a se relacionar, sabe? Pela saudade de estar junto. Eu acho que tudo isso pode servir como uma antena de sintonização nessa vibração de comunidade, de estar junto, de compartilhar, de aprender com o outro, de ouvir a história um do outro. Eu espero que no pós-quarentena as nossas músicas ressoem nas pessoas pela naturalidade de se conectar como ser humano, identificar as dores e as angústias de um momento tão doido como esse.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

As minhas expectativas são para que a gente encontre novas soluções. Que a gente consiga usufruir das ferramentas que a gente sempre teve à nossa disposição, mas que não olhava muito por conta do ritmo da vida e da forma tradicional como as coisas costumavam acontecer. Então, eu encaro isso como um desafio para a nossa criatividade: poder inventar novas formas de se conectar e usar a internet como um catalisador de conexões reais e novas formas de criar e divulgar o trabalho. Acho que a arte, no fim, é um meio de conexão, né? No sentido mais puro, é o que ela promove. A internet, por exemplo, também é uma ferramenta de conexão. Acho que essas duas coisas juntas… A gente ainda não descobriu tudo que dá para fazer. Acho que esse novo capítulo tem muito a ver com isso: de que forma nós vamos escrever novas coisas, novas… Não como se a gente estivesse “adaptando”, mas eu digo no sentido de criarmos novos meios de comunicação, novas formas de tocar, de divulgar, de trazer quem escuta e quem consome o seu trabalho para perto e fazer mais coisas juntos. Ao mesmo tempo que a gente tá longe, a gente tá perto de todo mundo — se todo mundo tá em casa. Os nossos ídolos estão em casa, as pessoas que têm mais visibilidade estão em casa, então acho que essas conexões podem acontecer. Espero que a proximidade seja maior, sabe? Acho que é isso que eu quero dizer.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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