Hugo Ali: “A privação momentânea nos mostra o que realmente faz falta.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Hugo Ali sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Hugo Ali (Crédito: Demetrius da Silva).
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Natural de Vitória, Hugo Ali é um cantor, compositor, guitarrista e baterista que vive na China há cerca de dois anos. Seus últimos projetos musicais em território nacional foram as bandas Broken & Burnt e Blackslug, que tiveram como último lançamento os EPs Another Round (2019) e Old Habits Die Hard (2018), respectivamente. Na China, o músico mantém-se igualmente ativo, tocando bateria com outros estrangeiros na banda 你妈买啤酒 e experimentando com vozes e os demais instrumentos na Shitsunami.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Juliano Gauche, Ana Müller, Cainã Morellato, Dan Abranches e Rafael Braz no primeiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser totalmente compreendido na teoria do que na prática. Como foi para você, que passou por tudo isso na China?

Hugo Ali: Eu passei férias no Brasil e retornei à China no final de janeiro. Começamos a ouvir falar sobre o que estava acontecendo em Wuhan [cidade onde foram identificados os primeiros casos da doença] dias antes do meu retorno. Num primeiro momento, ninguém achou que seria algo da magnitude que acabou sendo. A quarentena em si foi bem complicada, principalmente no começo. Literalmente saí de um momento de férias, com amigos e família, de alguns shows com a Broken & Burnt e fui direto pro confinamento, sem entender nada [risos]. Com o tempo, acabei estabelecendo uma rotina mais disciplinada e acabei me ajustando ao momento. Então, respondendo sua pergunta, não. Eu não estava preparado para o isolamento. As regras em Chongqing (onde eu residia na época) foram bem duras, porém se provaram eficazes após dois meses. Houve um controle rígido, onde apenas um habitante de cada residência podia sair de casa uma vez a cada dois dias pra fazer compras.

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Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação de um ponto de vista mental a esse período?

Para mim, o mais difícil foi a sensação de estar vivendo o mesmo dia várias vezes, a lá Groundhog day. Houve sim muita incerteza e ansiedade. Um aplicativo local nos dava os números de infectados, suspeitos e mortos em tempo real, além de mostrar a distância que você estava de algum caso confirmado. Assistir os números escalarem em velocidade bizarra foi também um desafio. Agora, apesar da situação por aqui estar controlada, ocorre um outro tipo de ansiedade, que é relativa ao bem-estar dos que aí estão vivendo agora (e por mais tempo) o que eu vivi aqui do final de janeiro até o final de março.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

De fora me parece claro que falta posicionamento da parte do Governo Federal. Posso estar errado, mas o que eu vi funcionar em outros países foi o isolamento. Não só na China. Eu infelizmente acho que se o Brasil quer passar dessa, vai precisar de políticas mais justas em relação ao isolamento. Até o momento foi feito um isolamento parcial, e o resultado está claro. Que o isolamento é ruim para a economia, é óbvio. Porém os que são contra não parecem contabilizar que a economia poderia ter sofrido a metade do dano se uma medida mais séria tivesse sido adotada há alguns meses. Para mim, o momento significa que precisamos mudar a forma de jogar esse jogo e abolir as fake news. Já passou da hora também de cair a grande ficha de quem ainda consegue apoiar o “governo” Bolsonaro.

“Com certeza algo mudou e as pessoas descobriram algo sobre si.”

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Com tantas fatalidades é até difícil pensar em pontos positivos. Mas de alguma forma sinto que as relações, mesmo que virtuais, se tornaram um pouco mais humanas. A privação momentânea nos mostra o que realmente faz falta.

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Hugo Ali (esq.) com a Broken & Burnt (Crédito: Pedro Maia).

Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Eu descobri que preciso estar ocupado. A pior coisa que pode acontecer é se sentir sem objetivo. Então, tudo que eu pude fazer, fiz. Gravei muitas ideias novas, soldei pedais de guitarra, desenhei, li, conversei com amigos, etc. Com certeza algo mudou e as pessoas descobriram algo sobre si.

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Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Eu sempre tive esse perfil de trabalhar sozinho em ideias iniciais e demos mal gravadas. Durante a epidemia tive muito tempo pra trabalhar em dois projetos em que estou envolvido. Trabalhei muito com Igor Comério nas mixes do Shitsunami — ele trabalhou bem mais [risos] — e também gravei algumas partes que faltavam pra completar o quebra-cabeças. Também finalizamos o EP da 你妈买啤酒 (ni ma mai pi jiu), que é uma banda que toco punk rock com outros estrangeiros em Chongqing. É bom frisar que os dois trabalhos foram gravados antes da epidemia, mas finalizados pela internet, evitando qualquer tipo de aglomeração. Além disso enchi a paciência de alguns amigos e fiz dois collabs postados no IGTV.

“Nada substitui o poder contido na aglomeração de pessoas que buscam na música algum tipo de refúgio.”

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Durante o período de quarentena, os projetos contribuíram com minha saúde mental e me mantiveram ocupado [risos]. Pra depois desse momento eu não tenho expectativas. É botar no mundo e ver no que dá.

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Como aqui a engrenagem já está rodando normalmente, eu vi que o retorno é muito bonito. Os primeiros eventos pós-quarentena foram indescritíveis. Muita energia acumulada e uma vibe fantástica. Acho que fica aberta a porta das lives e outras formas de interações online, mas fica muito claro que nada substitui o poder contido na aglomeração de pessoas que buscam na música algum tipo de refúgio. Então minha expectativa é que se supere esse capítulo o mais rápido possível aí no Brasil.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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