Patricia Ilus: “Ignorar a complexidade da situação é um erro.”

Leia na íntegra o papo que tive com a Patricia Ilus sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Patricia Ilus (Crédito: Herone Fernandes Filho).
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Patricia Ilus é uma cantora e feminista militante que estreou sua carreira no universo do funk manifestação com a faixa “Revolucionou” (2018). Desde então ela tem trabalhado com a disponibilização de novos singles em suas plataformas, como “Eu Inventei Você”, “Entre Nós”, “Mais Que Uma Canção” e “Corpo Fêmea”. Além disso, recentemente ela se aventurou na escrita, tendo inclusive passado por uma bem-sucedida campanha de financiamento coletivo para a triagem de seu segundo livro, Cabelos e Corpos.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de André Prando, Larissa Pacheco (Big Bat Blues Band), João Lucas Ribeiro (Muddy Brothers), Henrique Mattiuzzi (Amanita Flying Machine) e Marcus Luiz (Intóxicos) no terceiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparada para isso?

Patricia Ilus: No começo achei que estávamos entrando em quarentena cedo demais. Que as pessoas não foram preparadas o suficiente e não havia informações sobre distanciamento e higiene para a população toda. Não tinha esperança de que o Governo Federal fosse dar qualquer subsídio financeiro para manter a quarentena por muito tempo e me preocupei de não conseguirmos, me preocupei com as minhas finanças e a de tantos pequenos autônomos e pequenos comerciantes e pequenos empresários. Eu falei: “as grandes sobrevivem, os pequenos não”. As pessoas relativizavam dizendo que empresa quebra, mas morto não ressuscita. Elas estavam certas, mas ignorar a complexidade da situação é um erro também. Entrei em desespero e tive que tomar calmantes para dormir. Hoje vemos que a pandemia está crescendo no país. Não estamos educados, e não estamos conseguindo respeitá-la. Ainda não tenho respostas pra nada, mas pela forma com que as coisas foram acontecendo, tudo me pareceu precipitado. Eu não imaginava que o Congresso fosse se organizar para aprovar auxílios e isso me surpreendeu positivamente. Mas também a sordidez e a falta de escrúpulos de quem não se dá o trabalho nem de disfarçar o projeto de extermínio da população mais pobre do Governo Federal também me assusta. Nunca vivi isso, e estou muito preocupada. O dinheiro está sendo retido, os pagamentos estão sendo adiados sem motivo, e sem auxílio financeiro, empresas não podem fechar e pessoas não podem ficar em casa. Não é uma questão só de ignorância, é um projeto de morte que encurralou as pessoas. Eu não estava preparada para lidar com esses fatos. E tenho que lidar com eles de gota em gota para não surtar. Ficar em casa é o de menos. Eu fico bem.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Lidando mal [risos]. Minhas fontes de renda praticamente acabaram. Apareceu uma pressão enorme em fazer tudo online, sem eu ter estrutura, equipamento e às vezes nem conhecimento. Isso me deixa mal às vezes. Muito mal. Choro e depois melhoro. Parece que estou sempre procurando aprender alguma coisa que não sei, sempre correndo atrás de alguma coisa, nunca parece suficiente e minha autoestima às vezes desaba. A Secult [Secretaria de Estado da Cultura] lança edital emergencial cheio de critérios estranhos, cheios de restrições, aprovam poucos projetos e eu fico de fora. Os festivais e auxílios maiores como Festival Up e Banco Itaú tem muita concorrência. Tentei e nada. Fiz uma live no Festival Fico em Casa e foi bom, mas em questão de rendimento, foi muito baixo. Agora estou numa campanha de financiamento do meu novo livro, Cabelos e Corpos, para ver se consigo, num combinado com a editora, ter alguma renda. Enfim, continuo tentando. Também estou fazendo tofu pra vender. De vez em quando aparece uma cliente e fico animada. Duas alunas de canto estão continuando. Mas, por mais que tudo pareça uma loucura, eu tenho conseguido ficar a maioria dos dias calma e presente. É que, se a gente se concentrar no agora, o emocional melhora. Tenho uma filha maravilhosa, um companheiro presente e que me apoia. Me concentro neles. É claro que gostaria de estar fazendo shows e gravando meu CD, que era o projeto desse ano. Mas a vida sempre me mostra que tenho que encaixar os meus planos nos planos do mundo. E não parece que é o momento disso acontecer.

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Criar sem me preocupar. Melhorar no violão. Fazer curso de vídeo, fazer vídeos, gravações em casa, escrever meus contos. Cozinhar. Aprendi a fazer pão, que era um desejo reprimido. Estou tentando fazer uma hortinha, mas é meio difícil. A cebolinha tá sobrevivendo [risos].

“Sonho com uma relação com a natureza em que nos reconhecemos parte dela.”

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Estamos chegando em situações extremas e acho que precisamos de silêncio. E silêncio é algo difícil de extrair dessa sociedade que perdeu tanto sua conexão consigo mesma e com a natureza. Acho que não sabemos lidar com a ausência de respostas, e essa pandemia está deixando isso mais claro. Está mostrando quem somos mais claramente — nossas mazelas, nossos erros. Isso não quer dizer que vamos resolvê-los, mas ver já é alguma coisa. Porém, para refletir é preciso parar de tapar as lacunas com nossas respostas, sejam científicas ou religiosas. Estamos tendo que conviver com a dúvida, com a incerteza e falta de perspectiva. Isso pode ser interessante se não enlouquecermos e prestarmos mais atenção no corpo, no presente, no agora — mas sem romantizar. Pessoas vivem em situações muito diferentes e cada pessoa vai encarar à sua maneira.

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Patricia Ilus (Crédito: Herone Fernandes Filho).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Acho que em termos de crescimento pessoal, é possível. Vejo pessoas mudando hábitos alimentares, buscando algo a mais no seu cotidiano. Mas essa é a realidade de poucos. A grande maioria da população está vendo falir os mecanismos que criou para sua sobrevivência, e realmente acho que algum trauma ficará. Como sociedade, não vejo as coisas com otimismo, pelo menos num futuro próximo. Mas essa é uma perspectiva do agora. O sistema de desigualdade e opressão está de pé. O capitalismo que coisifica as pessoas continua vivo. Os grandes poderes estão muito bem articulados para se manterem no topo e cada vez explorar mais as pessoas. Como não sabemos até quando isso vai durar, pode ser que o tempo seja um fator muito determinante. Agora, posso falar sobre o que eu gostaria que acontecesse, que aí independe da realidade. Eu gostaria que o povo compreendesse que é a força motriz do sistema e que por isso ele (o sistema) é tão violento, que é para o mantê-lo na condição de explorado. Gostaria que com a compreensão de sua força e de seus direitos viesse um projeto de vida diferente e através da utopia buscássemos alternativas de sociedade mais autônomas, e ao mesmo tempo, representantes que trabalhassem por um governo que governa para o povo e não para os detentores do capital (aqueles 2%). Grupos que se ajudam, que compartilham, que buscam prover parte do que consomem. Não é nada muito extraordinário. É uma horta coletiva, é uma troca de trabalhos, que mostram ao cidadão que seu trabalho ensina e faz bem a si e à sua comunidade. É um trabalho que ele colhe os frutos diretos, assim como as paneleiras fazem panelas que vendem, mas também usam para cozinhar. É um trabalho não alienante. Sonho com uma relação com a natureza em que nos reconhecemos parte dela. Tenho estudado o ecossocialismo e tenho gostado dessas ideias. O capitalismo, assim como o imperialismo, é um sistema que pode acabar. Espero que acabe antes que ele acabe com o planeta. Espero que os índios sejam vistos como o grande povo que pode nos ensinar a viver novamente. Acho que esquecemos.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesma ou aprendeu nesse período de introspecção?

Eu sou uma pessoa introspectiva. Falo sozinha como hábito para aliviar a cabeça cheia de ideias. Isso não é do isolamento. Posso ser menos séria agora? Descobri que se eu acreditar que posso tocar bem o violão, meu som melhora muito e que vinho ajuda. Aliás, descobri que posso beber muito mais que esperava, porque passar por esse estresse sem álcool é praticamente impossível [risos]. Aprendi a fazer pão e fiz uma pizza vegana que ficou muito deliciosa.

“Eu posso oferecer minha voz e minha visão de mundo. É assim que tento ser um ponto de revolução.”

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Tenho produzido muitos vídeos, fiz uma música nova e arranjamos (eu e Fabrício Hoffmann) outra que tinha aparecido pouco antes de começar o fim do mundo. Tenho me dedicado a escrever o meu próximo livro, que tem o título provisório “Contos inacreditáveis baseados em fatos reais”. É um livro de comédia baseado em histórias minhas, de família e contadas por amigos. Aliás se você tiver alguma, estou recebendo histórias de micos ou tragicomédias.

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Patricia Ilus (Crédito: Herone Fernandes Filho).

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Acho que sou uma artista atenta. Tenho produzido canções que sei que vão acalmar e alegrar as pessoas. Vou lançar uma música pelo festival Pandêmico (se for aprovada na primeira seleção) que se chama “A Hora do Não Ser”, que é uma tentativa de buscar essa reflexão das pessoas. Essa conexão com seus instintos, com seu corpo, com sua natureza. É preciso fazer menos barulho pra ouvir os outros sons. E acredito que tenho lançado algumas ideias, de diversão, representatividade, de amor, de busca pela sabedoria, de ver a vida como um laboratório para experimentação. Eu trabalho na linha do encantamento. Uma melodia bem pensada leva o pensamento pra fora do pensamento recorrente, equilibra as energias, e te dá calma para pensar. Rir também é um ótimo remédio. Então trabalho nesse sentido. Meu livro do financiamento coletivo que mencionei, quando sair, vai ser bom também, porque ele é uma mistura de contos e poesia. É o cruel que depois flutua, porque nós somos feitos de flutuações. As palavras não são suficientes para traduzir almas, é preciso cantar, seja em voz, dança ou sombras de uma luz de teatro. Eu posso oferecer minha voz e minha visão de mundo. É assim que tento ser um ponto de revolução. Eu sei, sou muito aquariana [risos].

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Sem perspectivas. Futuro demais.

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