Ana Müller: “Nossas escolhas refletem na vida de todos.”

Leia na íntegra o papo que tive com a Ana Müller sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Ana Müller (Crédito: Sarah Outeiro).
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Natural de Ibatiba, Ana Müller é uma cantora e compositora que ganhou visibilidade pelos vídeos que postava em suas redes sociais. Após lançar um EP homônimo e uma coletânea de canções acústicas, no ano passado disponibilizou seu primeiro álbum cheio, Incompreensível.

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Juliano Gauche, Dan Abranches, Rafael Braz, Cainã Morellato e Hugo Ali no primeiro episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparada para isso?

Ana Müller: Acho que ninguém estava preparado pra isso. É uma situação bem surreal a que estamos vivendo, os dias passam e tudo fica cada vez mais bizarro. Mas não estarmos preparados não significa não compreender a importância de cumprir o isolamento. É absurdo ver como a maioria das pessoas seguem achando que é exagero. Acho que o processo de digerir é constante, todos os dias são notícias estarrecedoras. Manter a sanidade em meio ao caos é um desafio.

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Tem dias mais fáceis e dias mais difíceis. Os boletos não param de chegar, compromissos feitos antes da pandemia agora batem na porta e aqui a gente tá, se desdobrando pra conseguir manter tudo em ordem. Até agora estou conseguindo cumprir com meus compromissos financeiros, mas quanto mais o tempo passa, mais insustentável vai ficando. É preciso ter calma, ter paciência, ter consciência dos privilégios. Eu tinha reservas, mas e as milhares de pessoas que nunca tiveram condições de ter reservas? Mais do que sobreviver neste período, é preciso ajudar outras pessoas, pensar em estratégias, comprar de comerciantes locais, oferecer ajuda às famílias em vulnerabilidade. Tento não cair no desespero, é um dia de cada vez. Ter uma rede de apoio nesse momento é muito importante.

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Ana Müller (Crédito: Matheus Costa).

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Eu sempre fui uma pessoa mais isolada, sempre fui de sair pouco, tenho os mesmos poucos amigos há muitos anos, todo mundo que me conhece, conhece também minha natureza meio eremita. Meus pais e irmã são meus vizinhos, minha esposa também compartilha desse meu estilo de vida mais isolado, então o isolamento em si não me afetou psicologicamente, tenho uma rede de apoio. O que me afeta bastante é ver os efeitos desse vírus no nosso país, a quantidade de pessoas morrendo todos os dias, as milhares de pessoas que ignoram a importância do isolamento, essa loucura que acomete o homem que deveria liderar o país e proteger os brasileiros, ver ideias fascistas e nazistas ganhando força é enlouquecedor. As notícias é que devastam nossa sanidade. Mas eu tenho conseguido manter minha cabeça no lugar a maioria do tempo. No meio do ano passado eu comecei um tratamento psicológico e isso fez muita diferença agora, meio que me preparou psicologicamente pra tudo isso, minha força vem de saber que existe um lugar seguro dentro de mim mesma, e que posso acessá-lo sempre que precisar, e saber que tenho uma rede de apoio.

“Agora a gente enxerga quem votou por ignorância e quem é de fato mau caráter.”

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Tá cada vez mais difícil entender as pessoas. Parece que o Brasil vem vivendo um período de insanidade. Aqui é o único lugar do mundo que as pessoas querem protestar pelo fim do isolamento. É um absurdo, é preocupante, é um negócio que me desespera. Acho que esse é o momento de reconhecermos quem realmente compreende e dá importância ao senso de coletividade. Agora a gente enxerga quem votou por ignorância e quem é de fato mau caráter.

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Sempre tem um lado positivo quando a gente pensa no todo. Algumas pessoas vão aproveitar este momento para se autoanalisarem, outras vão notar que precisam de ajuda, outras vão desenvolver talentos que não faziam ideia, outras vão se aproximar da família. Mas também existem famílias e pessoas que não vão conseguir tirar nada de positivo nisso tudo, que estão sem renda, que tiveram seus auxílios negados, que perderam entes queridos, que estão passando por um período de extrema vulnerabilidade. Como perguntar pra essas pessoas o que tirarão de positivo? Acho que todos nós, enquanto sociedade, devemos entender que algumas de nossas escolhas refletem na vida de todos. As pessoas precisam aprender a votar. Se tivéssemos um líder neste momento, quem sabe não teríamos tantas perdas, quem sabe as famílias em vulnerabilidade teriam mais atenção. Só vamos poder contar nossas perdas e nossas vitórias depois que isso tudo acabar.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesma ou aprendeu nesse período de introspecção?

Descobri que, apesar de toda a minha natureza isolada, eu gosto de ver as pessoas. Mesmo que eu não saia muito, gosto de saber que as pessoas estão por aí, vivendo, rindo, se divertindo. Eu já estava afastada dos palcos antes do isolamento social e eu não sabia quando eu iria voltar, e agora, fazendo live pra ajudar a galera a passar melhor pela quarentena, recebi tanto carinho. Me deu saudade do palco, da estrada, da loucura. Me fez reconhecer a importância que meu trabalho tem na minha vida e na vida de outras pessoas. De como é importante estar perto, o calor e a energia das pessoas faz muita falta quando a gente toca.

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Ana Müller (Crédito: Autorretrato).

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Eu estava produzindo muita coisa antes do isolamento obrigatório, tenho umas 20 músicas novas compostas antes do isolamento. Como eu falei, eu já vivo meio que isolada quando não estou tocando/fazendo show ou trabalhando com minha esposa. Quando a pandemia começou por aqui, me senti meio que obrigada a produzir e isso gerou muita ansiedade. Essa obrigação de ser produtivo o tempo inteiro é infernal e eu saí dessa neura. Agora é um período pra fazer o que você quiser (desde que esteja isolado), então se não quiser fazer nada, não faça nada. Não é obrigatório ser produtivo, acho legal aproveitar esse período pra descobrir outras coisas que você gosta de fazer — ou simplesmente não fazer nada. Essa era tecnológica tirou do ser humano a benção do ócio, a beleza de ficar deitado olhando pro céu por horas. A gente não sabe mais ficar quieto sem nenhum estímulo, a gente precisa estar o tempo inteiro sendo estimulado por alguma coisa, sendo distraído por alguma coisa, trabalhando em alguma coisa, aprendendo, sendo útil. Talvez seja a hora de reaprender a ficar sozinho com seus pensamentos.

“Enfrentamos tempos muito sombrios na área da cultura não é de hoje.”

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Eu espero que meu trabalho artístico seja sempre útil para as pessoas, seja num momento de pandemia ou não. Fico feliz de através da minha música expressar sentimentos que as pessoas querem expressar também. Gosto de saber que minha música faz pensar, causa alguma transformação. Meu último álbum fala muito de autoanálise, e é como eu espero contribuir através da minha arte, é preciso olhar pra dentro pra entender as coisas aqui fora. Mas enquanto artista e figura pública, eu espero dar visibilidade para as pessoas e para causas necessárias para a população. Eu espero sempre poder dar voz para causas importantes, como o feminismo, o movimento antirracista e a causa LGBTQ+. Quero ser sempre um canal de transmissão de ideias de igualdade e de amor fraternal.

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Ana Müller (Crédito: Sarah Outeiro).

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Essa é uma pergunta ainda sem resposta. Nas minhas conversas com a galera da cultura, artistas, produtores culturais, trabalhadores da cultura em geral, ninguém sabe ainda como será, o que esperar, o que vamos fazer. É difícil. Não temos um ministério da cultura, não temos um presidente que se importa com isso, enfrentamos tempos muito sombrios na área da cultura não é de hoje, e agora com essa pandemia é difícil conceber expectativas. Vai ser a última área a voltar, mas o que eu tenho certeza é que nós sempre vamos nos reerguer, nós sempre vamos superar tudo. Nós sempre tiramos forças pra continuar e dessa vez não será diferente. Quando a hora chegar, nós vamos nos reinventar, nos apoiar e fazer acontecer, seja como for. “O show tem que continuar”.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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