“Descendente de família nordestina, capixaba de coração, goiano de nascença e mineiro no registro”. É assim que se descreve Gustavo Macacko, cantor e compositor hoje radicado no Rio de Janeiro. Suas primeiras imersões no universo da música autoral vieram com a banda de rock Símios, com a qual chegou a lançar três discos. Trabalhando hoje como artista solo, ele fez sua estreia com o álbum Macaco, Chiquinho e o Cavalo (2009), seguiu com um dueto com sua filha Elis no temático O Macaco e a Baleia Cantam Para Crianças de Todas as Idades (2013), continuou com o lançamento do livro-cd Despontando para o Anonimato (2014) e hoje divulga Humanifesta, álbum que saiu no ano passado sob a produção de Juliano Gauche.
Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de 6ok (Solveris), Vinicius Hoffmam (Zé Maholics), Lua MacLaine, Gil Mello (Mudo) e Davi Cirino (Skydiving From Hell) no quinto episódio da série Quarentalks.
João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?
Gustavo Macacko: Acho que ninguém estava preparado pra esse momento. Ele é novo pro planeta, mas não pra história da humanidade. As pestes, a crise econômica, a queda do Império e o Renascimento são ciclos que se repetem historicamente. Vivo de arte há mais de 20 anos e sei da necessidade de se recriar constantemente pra se manter vivo. Nesse ponto, acho que consegui me adaptar com uma certa velocidade, pois a introspecção, o reposicionamento emocional, a prática de se viver com pouco e o escambo já eram parte da minha escolha enquanto artista. O que mudou pra mim foi a intensidade do momento, pois uma pandemia exige mudanças mais rápidas e viscerais, visto que você perde parte de seu livre arbítrio e passa a ter que aceitar uma imposição do planeta. E isso bateu de forma bem profunda em mim.
Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?
Eu tinha uma turnê europeia agendada pra abril. Faria shows que passariam por Berlim, Paris, Amsterdã, Barcelona e Portugal e estava muito ansioso por ela, pois tinham 5 anos que não fazia shows pela Europa. Com a pandemia, tive tudo cancelado e tive que aceitar que a maior viagem que conseguiria fazer nesse momento era ir fazer compras aqui do lado. Essa experiência foi marcante, porque além da perda material, tive que me reorganizar interiormente pra conseguir construir novos caminhos. No fundo foi uma aula de transmutação pra aceitar que “o futuro é um furo no muro da demora e que o passado imperfeito ficou guardado lá fora”. Bem, vale ponderar que ficando em casa as contas diminuíram também. A matemágicka mudou. Perder os shows ao vivo foi perder minha maior fonte de renda, mas percebi que novos movimentos foram se criando. Comecei a receber apoio do meu público quando fazia lives ou apresentações virtuais, fui convidado pra participar de campanhas como #juntospelamusica da UBC + Spotify, que envolviam doações, e meu entendimento sobre o papel da arte nesse contexto foi mudando. Passamos de um lugar marginal socialmente pra um lugar essencial virtual. Ou as pessoas estão vendo notícias ruins/fake news ou elas estão ligadas em lives, minisséries, filmes, shows etc. Meus números de consumo cresceram e minha renda das plataformas melhorou. Passei a ser procurado pra encontros particulares como um tipo de “médico de alma” e, através do projeto @incorporalma, passei a dar oficinas de Expressão Artística e Corporal envolvendo música, escrita, comunicação e artes brasileiras (capoeira). Entendo que o vírus trouxe novas consciências financeiras também — fazer mais comida em casa, se desligar do que é supérfluo e viver com o básico. Editais emergenciais foram criados nesse caminho, mas o que mais chamou minha atenção foi voltar o foco pro essencial: cuidar da saúde, da alimentação, entender a composição como um processo de cura interior e aceitar que nossa rotina tava viciada e cheia de equívocos. Comecei a participar de grupos de filosofia com Viviane Mosé, Movimento Orgânico com Itapuã Beiramar e novas parceiras musicais foram se realizando virtualmente. Cheguei a lançar músicas, como a versão “O Pulso 2020”, em que as vozes foram gravadas por áudios de zap. Isso quebra paradigmas e mostra um novo modelo de entendimento do cenário musical.
Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?
Minha força motriz é a arte, que agora está mais do que nunca ligada intimamente a saúde. Estou compondo mais, escrevendo poesias e criando ambientes de debates — produzindo pra não perder o equilíbrio emocional. Porém entendo que precisamos nos reavaliar também e mudar o modus operandi que estávamos acostumados. Moro num sítio místicko em meio à natureza e isso tem me ajudado bastante. As forças da floresta e a conexão com a natureza me acalmam. Lógico que tenho baixas, e por vezes a paranoia e o medo de morrer me pegam. O Rio é um lugar complexo, as pessoas estão nervosas e até se agredindo nesse momento. Mas passei a falar com amigos que não falava, me liguei nas tarefas de casa, a alquimia de se preparar uma comida, e também me permiti ficar à toa mesmo. Navegar por mares que não navegava, organizar o passado — coloquei os discos dos Símios nas plataformas. Isso me ajudou a trabalhar questões antigas, ao mesmo tempo que escrevo e componho focado nos próximos passos. Acho que meu último álbum, Humanifesta, foi um presságio desse momento. Estamos vivendo uma Guerra Invisível e precisamos estar preparados. Reduzir o tempo nas redes sociais e buscar uma evolução pra não ser contaminado pela pandemia das fake news.
“Saber que a morte está mordendo nosso calcanhar é uma revolução pessoal e profissional”.
Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?
Acho que a evolução é inevitável, mesmo que para isso precisemos viver uma Guerra. Cada um acredita no que convém, e nosso país é bem mal-educado e individualista. Vamos pagar um preço e isso não tem como mudar. Atravessar esse momento vai ser uma missão que implica em divisões e perdas. Sou um artista que me posiciono, pois sei da minha responsabilidade e busco fazer o possível pra ajudar o entorno dentro das minhas possibilidades. Cada um terá que fazer o mesmo — e quem não assumir uma posição também estará se posicionando. Hora de pensar no outro, pois, dessa vez, a nossa saúde depende da saúde do outro. Isso é forte e precisa ser entendido. A política está no viver e as escolhas de cada um serão o reflexo desse entendimento. Lidar com as diferenças é nosso maior desafio.
Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?
Sim. Horizontalizar as relações e trabalhar a humildade; valorizar o que é essencial pra sobreviver e exercitar o perdão; aproveitar pra enfrentar medos e traumas que estavam varridos pra debaixo do tapete; se reinventar sem se preocupar com a opinião alheia; e valorizar quem amamos de fato é que fazem a diferença na nossa vida. Parar de falar em voltar ao “novo normal”. Normal é o cacete, quero mesmo é viver minha loucura.
Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?
Muita coisa. Passei a me conhecer melhor, reconhecendo questões e medos mais profundos. Tô podendo ajudar pessoas a se desenvolverem artisticamente e isso tem me feito muito bem. Mudei minha relação com as redes sociais e ando me ligando em assuntos mais existenciais. Trabalhei melhor minha disciplina e a ausência dela como forma de crescimento. Saber que a morte está mordendo nosso calcanhar é uma revolução pessoal e profissional. Amar, perdoar, plantar, colher e mudar as coisas interiormente me interessa mais.
“Parar de falar em voltar ao ‘novo normal’. Normal é o cacete, quero mesmo é viver minha loucura”.
Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?
Minha criação nunca dependeu de isolamento. Crio onde for pra não morrer. É uma relação tão essencial como a de respirar pra mim. Agora estou produzindo uma nova canção chamada “Anti Vírus” [que sai no próximo dia 24], baseada no texto da economista Eduarda La Rocque, que propõe a criação de um fundo pra ajudar a combater a miséria no mundo. Ela é parceria na música junto como minha companheira Flor Fusi. Também tô em processo de criar uma metodologia de Expressão Artística e já comecei a compor meu próximo trabalho — que vai flertar mais intimamente com a capoeira, a música negra e o Nordeste. Compus uma canção no início da Pandemia chamada “Vale a pena ser de novo” e uma poesia chamada “Alô Transmissor” e pus no meu canal do YouTube. Através da página @incorporalma, criei um programa semanal chamado Duplo Sentido, onde eu e Flor conversamos com educadores, artistas e profissionais da saúde. Mas também tô curtindo ficar olhando pro céu deitado na rede, rolando na grama, cuidando do jardim e me comunicando mentalmente com o mundo extra físico.
Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?
Espero que ele seja um tipo de oxigênio pra quem se sentir sufocado, uma fonte de inspiração pra quem quiser criar e um caminho místicko pra quem topar voar. É uma forma de me curar e ajudar pessoas que estão buscando suas próprias curas. Sou um cronista musical e poeta do cotidiano, minha busca é a relação atemporal com a obra. O resto fica pra transa entre o destino e o livre arbítrio.
Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?
Aprendi a não criar expectativas. Por enquanto, meu foco está na minha Quarentena de Cuecas. Acho perda de tempo colocar energia no futuro nesse momento. O tempo é vida e viver cada dia tá valendo muito. Percebo que tenho tido um feedback muito legal do meu público nesses tempos, e que ele está crescendo passo a passo sem que eu precise pôr ânsia ou foco nisso. Passei a me relacionar com mais leveza com esse processo e me comunicar com eles de forma mais clara e qualitativa. Isso pra mim tem sido como adubar a terra pra próxima plantação e colheita. No mais, quero viver o estado de presença com mais entrega e aceitar de uma vez que “quando eu morrer ainda será agora”.
Texto: João Depoli | @joaodepoli.