Gimu: “Não existe mais tempo para o Brasil ser o país do futuro.”

Leia na íntegra o papo que tive com o Gimu sobre esse período de quarentena e os seus desdobramentos atuais e futuros
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Gimu (Crédito: Divulgação/Facebook).
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Gimu é uma das figuras mais enigmáticas e queridas do circuito musical capixaba da virada do milênio. Na época, ele era o vocalista e guitarrista da terrorturbo, uma banda que mesclava elementos orgânicos e eletrônicos em meio a referências como Kraftwerk, Joy Division, Radiohead e Sigur Rós. Hoje fixado em São Borja, no Rio Grande do Sul, ele tornou-se um artista solo, ou melhor, um incansável artista solo! Seus discos lançados já estão na casa das dezenas e suas canções agora buscam sensibilidade e atmosfera em meio à chamada música drone e dark ambient. O destaque fica para seu álbum mais recente, Susurrus (2020).

Confira abaixo a íntegra da conversa que tivemos e não deixe de ler sua participação ao lado de Gabriela Terra (My Magical Glowing Lens), Sandro Juliati (Volapuque, Mukeka di Rato), Leonardo Machado (Blackslug), Axânt e Everton Radaell (Auri) no quarto episódio da série Quarentalks.

João Depoli: Nós brasileiros acompanhamos com relativa antecedência a evolução dessa pandemia ao redor do mundo. Ainda assim, o ato de entrar em quarentena provou-se ser algo mais fácil de ser compreendido na teoria do que na prática. Você acredita que estava preparado para isso?

Gimu: Quando decidi jogar tudo pra cima no final do ano passado e me livrar de um trabalho que estava me matando, a única coisa que eu queria era nunca mais ter que sair do meu lar. Queria achar um jeito de fazer tudo de dentro do meu apartamento, de ganhar grana assim e pronto. Vida resolvida. Seria uma beleza! Quase tudo que preciso está dentro desse apartamento aqui. Por que iria querer sair? Acho um saco TER QUE ir em mercado, farmácia, sair. Claro que seria bem bom não existir pandemia alguma e, assim, ficar em casa seria somente uma opção. Não tenho sofrido com isso e se pudesse escolher, levaria minha vida assim para sempre. Mas…ter que ficar em casa nesse momento tem a ver com algo muito ruim. Como sentir-se bem? Só sendo uma pessoa muito má! Não tem como. O número de infectados, o número de mortos, minha família e amigos vivendo em capitais… e olha o Brasil o que virou. Quando voltaremos a ser “somente” aquela caca que éramos antes de tudo o que aconteceu de 2018 para cá? Ter que lidar com um “novo normal” e com um país que me mata de vergonha [e que está] lotado de pessoas que fazem a gente sentir muito ódio diariamente é um troço que adoece! Odiar é muito ruim!

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Como você tem lidado com o fato de que parte de suas atividades, planos e até mesmo fontes de renda foram reduzidas, adiadas ou até mesmo extintas?

Haja pagamento no PicPay [risos]! Eu não faço planos. Faz tempo que simplesmente vivo (sobrevivo?). Não há nenhuma paz nisso. Vai que quem esteja lendo isso aqui pense que eu sou um daqueles que viu a luz… vi nada. Vi a conta de luz e caí duro [risos]! Talvez tenha entregado os pontos para um monte de coisa, mas o sofrimento não deixa de existir. É tipo: “vou tentar e se der em algo, bem, e se não der, vou sofrer e tudo bem”. Se eu já não sabia mais de nada, agora eu não sei de mais de nada vezes 2. Comecei a fazer academia de novo — horror —, ir a médicos, fazer exames, fazer análise, fisioterapia. Veio a pandemia e desisti de novo de tudo — penso, logo desisto [risos] — e sigo engordando, caprichando no entupimento das artérias. Se der tempo, depois eu vejo se volto a me cuidar. Faz tempo também que busco algum sentido em estar vivo. Sabe a listinha: “existir é bom, porque…” e “existir é supervalorizado, porque…”?. Quando começo a pensar nisso, corro e ocupo a cabeça [risos].

Desde que entramos nessa, vimos que o isolamento teve diversos reflexos nas pessoas. Enquanto uns não notaram muita diferença em seu cotidiano, alguns viram seus problemas com depressão sendo amplificados, outros passaram por crises de ansiedade e mais. Como tem sido a sua adaptação a esse período?

Todo dia levo um papo com meu cérebro, porque até agora não entendi. Considerando tudo o que passamos — eu e meu marido — desde que nossa vida mudou totalmente quando mudamos para o interior do Rio Grande do Sul, como não tive mais depressão daquelas que levam a gente lá para o fundo escuro horroroso do qual você não tem ideia de como sairá — mesmo já tendo estado lá e saído de lá várias vezes. Sei lá se é porque trabalho muito, se estou sempre fazendo algo — nem quando decido ficar parado eu fico parado, sou inquieto; Sei lá se é o remédio que tomo desde o ano passado — tomava outro antes —; Se é porque aumentei a dose de um outro que tomo há séculos. É quando vêm aqueles pensamentos babacas do tipo: “sou forte pra caralho”, “sou mais forte do que imaginava”, “quem diria que eu daria conta”, “estou me redescobrindo”, sabe? Não escapo dessas besteiras. Assim como não escapo do meu estômago desgraçado quando me fode com refluxo, ou de um intestino que vai acabar me dando câncer. Também não escapo de outro órgão cruel que tenho dentro da cabeça, e que não sou eu. Eu achava que eu era meu cérebro, que ele era eu, mas já saquei que não. Adianta nada sacar essas coisas [risos]. Ocupar-se é o grande lance. O trabalho — que não dignifica porra nenhuma — já come várias horas minhas todos os dias, aí eu vou usando TV, celular, computador, tem Genoveva [sua cadela], Edin [seu marido], e o tempo vai passando e nem vejo! Já li dois livros na quarentena e tenho outros me esperando. Estou viciado em playlists dos 100 “maiores sucessos” da Billboard de 1981, 82, 83, 84, 85, 86, 87 etc.  Me sinto lá, ouvindo rádio naqueles anos desconfortáveis — mas que de longe ficam parecendo uma coisa assim toda poética e romântica. Volta um monte de coisa, me divirto muito. Ando tão sem paciência para explorar discos novos, sabe? Fico puto comigo mesmo! Mas acho que é porque tem sido uma fase para ler e não para ouvir. As playlists da Billboard eu coloco pra tocar quando vou cochilar ou quando tomo banho, ou seja, “ouço”.

“Esse papo de gentileza e calor humano serem características do nosso povo… aham, na outra vida. Chega dessa falácia”.

Enquanto alguns defendem que o isolamento deve ser absoluto, outros o enxergam como um exagero e toda essa discussão parece apenas amplificar esse período de extrema divisão social que já vivemos. Nesse contexto, o que você acha que esse momento significa para nós como sociedade?

Eu vou ser egoísta nessa resposta, tá? Eu realmente espero que o Brasil entenda de uma vez por todas que muitas pessoas não precisam mais sair de casa para trabalhar, que já dá para realmente estarmos no futuro nesse aspecto. Existe essa coisa velha, embolorada, leis, regras, sei lá o que, e a gente tem que sair de casa para trabalhar. Puxa vida! Pensa em como seria bom para o planeta um mundo de gente trabalhando em casa, sem usar carros, e o que não seria gasto de energia, água etc. Espero que tudo o que estamos vivendo sirva para paradigmas mudarem, para novos olhares existirem, para empresas se adequarem. Tanta coisa é tão burra ainda nesse tal SISTEMA. Claro que estou pensando em mim e em como isso seria bom PARA MIM. Eu quero um mundo lotado de pessoas sensacionais e quero sentir cheiro de amor no ar, amor em profusão no ar. Todas as coisas maravilhosas que têm a ver com o que chamamos de amor. Tem como? [risos].

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Gimu (Crédito: Divulgação).

Acha que é possível tirarmos algo positivo de um período como esse?

Acho que a resposta acima meio que responde essa. Espero que brasileiros aprendam que usar máscara é preciso — para sempre. Que usar álcool para desinfetar as mãos também, bem como lavá-las sempre. Espero que brasileiros entendam que é necessário fazer certas coisas PELOS OUTROS e não somente para si próprio. Esse papo de gentileza e calor humano serem características do nosso povo… aham, na outra vida. Chega dessa falácia. Somos nada. Não existe mais tempo para o Brasil ser o país do futuro. As cores já foram mostradas junto com as caras e acredito que essa ruptura não tem mais volta. Para o bem e para o (muito) mal.

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Num foco mais pessoal, o que você descobriu sobre si mesmo ou aprendeu nesse período de introspecção?

Nada. Mudou absolutamente nada. Não é um horror? [risos]. Mas eu sempre tive muito tempo para mim e para as minhas coisas, mesmo tendo dois cargos (coordenador e professor) há muitos anos. Sempre dei um jeito. Nos últimos tempos, esse tempo tem sido minha amada noite, mais do que nunca. Ir para cama ali pelas 3 da manhã, ler, ouvir música, ver coisas no celular, dormir às 5, acordar perto do meio-dia. Minha rotina, mesmo fora de quarentena, me permite isso. Talvez o maior medo da minha vida seja ter que um dia, novamente, madrugar para ir trabalhar. Prefiro não continuar vivo. Não é a morte que me apavora. É viver uma vida que odeio, porque tenho que pagar contas para… viver.

“Minha relação com música sempre foi intensa e minha vida foi moldada por bandas, discos e canções”.

Quando se trata de compor ou trabalhar num projeto criativo, muitas pessoas naturalmente buscam um certo isolamento. Esse período tem sido favorável para você nesse sentido?

Passei meses sem fazer nenhuma música. No final do ano passado me obriguei a começar a criar coisas novas, já que é algo que me dá muito prazer, uma grande diversão. Fiz um monte de coisas. As canções mais serenas já foram lançadas em um álbum chamado Susurrus e as outras estão por aqui, no computador. Ouço-as, penso. Ainda não tenho certeza de que são realmente boas e merecem existir para o mundo. Estou todo enrolado com coisas da faculdade, um monte de relatórios, provas, ihhh… nessas horas sou o mesmo Gilmar de sempre que foge de tudo que pode fugir: tudo que exige muito de mim. Já sei que depois que faço tudo, me sinto super bem. Não sei por que não faço tudo logo. Me apaixonei nessa quarentena pela Viv Albertine, que era a guitarrista das Slits. Li o livro dela, chamado “Clothes, Clothes, Clothes. Music, Music, Music. Boys, Boys, Boys”. Aí finalmente parei para ouvir o primeiro e clássico disco das Slits, chamado ‘Cut’ e finalmente o entendi. Por causa do livro, também parei para ouvir X-Ray Specs com atenção e também finalmente entendi a banda. Essas coisas simples me fazem um bem danado.

Como você espera que o seu trabalho possa contribuir tanto no período durante quanto no pós-quarentena?

Quem tem interesse na música que faço busca nela algum tipo de refúgio. É o que eu busco nos discos que amo desde sempre, ou naqueles pelos quais me apaixono. Então espero que minha música (torta) continue fazendo alguma diferença em vidas. Minha relação com música sempre foi intensa e minha vida foi moldada por bandas, discos e canções. Faço discos esperando que quem os ouça tenha essa mesma relação.

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Gimu ao vivo no Festival Novas Frequências (Crédito: Divulgação/Facebook).

Por fim, muito se especula sobre como será o convívio social num período pós-quarentena e os seus impactos em toda a cadeia musical. Quais são as suas expectativas para esse novo capítulo?

Sabe que em nenhum momento parei para pensar sobre isso? Eu estou curioso para ver como o mundo vai se ajustar. É o papo do aprendizado, de aprender com as desgraças, de, com isso, ser melhor do que antes. Eu não vivo de música, o que é uma pena enorme, então acho que não serei afetado de forma nenhuma. Também não vou a shows porque moro bem longe de capitais. Não saio de casa para festas, não sou de ficar zanzando por aí. Olha eu falando somente sobre mim novamente. Perdão. Eu acho que o mundo aprenderá e seguiremos. Nunca foi diferente. É muito triste que tantas pessoas já tenham morrido e que tantas ainda morrerão até que uma vacina apareça e estejamos livres de mais essa. Fico pensando sempre em até quando eu durarei. A gente e a mania de se achar eterno. Meu marido fala que está tudo bem em morrer, mas que não quer sentir dor. Pois é.

Texto: João Depoli | @joaodepoli.

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